sexta-feira, dezembro 09, 2005

Mundo De Baixo - Louise Gracielle

Aquela cidade era atípica, comparada às outras do mundo (in)existente. Era tão bizarra e, de certa forma, assustadora que nenhum livro a mencionara, nenhuma boca pronunciara seu nome, nenhum ser "normal" comentara sobre ela. Era um sigilo de um Estado que se envergonhava de possuí-la.
Naquele município, não existiam leis. As regras éticas haviam sido quebradas pela inconseqüência de seus habitantes, pela indiscrição e delinqüência deles. Eram marginais de uma sociedade que sequer os conhecia; mantidos no subsolo, como um reforço da idéia de quão eram baixos.
Possuíam hábitos estranhos. Costumavam conversar com máquinas, tinham acesso de raiva e as xingavam quando algo não funcionava. Quem os visse jamais compreenderia aquele comportamento selvagem, ignorante.
Por mais que sentissem o contrário, os moradores não se conheciam, mesmo estando na mesma cidade esquecida. Mas estabeleciam uma concatenação estranha entre si naquela distância minusculamente enorme. Usavam aparelhos para sua comunicação e ficavam apenas dentro de suas casas fechadas, à espera de suas respostas. As pessoas se sentavam frente a frente com suas máquinas para lerem estórias que outros teciam, adotando-as como se fossem delas mesmas. Beijavam-se e se abraçavam, sem jamais terem se tocado. Mandavam seus beijos, abraços, bons dias, boas noites em mensagens escritas que dali, da concretude de uma tela, passavam para o ambiente, eram captadas por poderosos satélites, retransmitidas à máquina do destinatário a qual materializava novamente os beijos, os abraços, os bons dias e as boas noites em meros escritos. Nenhum deles eram sentidos na pele do outro; entretanto, era como se o ar ficasse carregado daquelas coisas boas.
Trocavam estranhas imagens estáticas de si mesmos. Viviam em poder de objetos de luz própria que era atirada, ao comando de um clique, para registrar um instante. Chamavam aquilo de "flash" e as imagens de "fotos". Às vezes usavam câmeras que transmitiam num átimo o que se passava do outro lado: cenas picadas, a perfeição da transmissão nem sempre ocorria. Ficavam felizes por ver o outro na tela e, de repente, a solidão se esvaía.
Nesse sistema de vai e vem, material e virtual, faziam suas confidências, odiavam-se, apaixonavam-se. Passavam horas e horas trocando mensagens, juras de amor, insultos. Por mais que nada fosse "cara a cara", tudo possuía uma intensidade real, capaz de comover aqueles habitantes gélidos na carne e no osso.
Sem sequer perceberem o tempo fluindo entre seus dedos, envelheciam solitários... De olhos em tela e dedos em teclas, definhavam seus sentimentos e toda a matéria que os caracterizava como vivos. Extintos por sua própria invenção, por seu hábito compulsivo, por seu "instinto irracional".

(Enquanto isso, a vida lá em cima transcorria da melhor forma possível, em harmonia inimaginável e perfeição invejável... Mundo de contrastes e contradições.)

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