terça-feira, dezembro 13, 2005

Lovunication - Silvia Curiati

Todo casal que se preze tem alguns rituais, ou alguma palavra, um olhar diferente, algo que remeta a uma situação sem relação aparente com o momento - vou chamar isso de lovunication. Pode ser uma música, por exemplo. Aquela que toca e o casal se busca mutuamente com o olhar, no meio da festa bagunçada, porque significa algo importante, ou melhor, representa a importância do que eles cultivaram até aquele momento.
Me explico com um exemplo de conexão verbal: vários amigos numa mesa de um bar, alguns casais, outros solteiros, todos conversando e rindo bastante. Até que no meio de um assunto qualquer, ela vira para ele e diz "verde". Ninguém entende, nem dá muita bola. Ele sim, compreendeu perfeitamente o que ela quis dizer com aquela palavra solitária lançada repentinamente, e sorri cúmplice, fazendo um carinho em seu rosto. O papo continua.
Este é um exemplo simples de lovunication, já que existem as versões não-verbais também e até alguns hábitos imutáveis. Era o caso de Maria Rita e Gabriel.
Eles se conheceram numa festa à fantasia, com o tema 50's e 60's. Ela usava saia rodada, blusinha de gola alta com echarpe, meia-soquete e sapatinho branco. Os cabelos amarrados num laço de fita, formando um rabo-de-cavalo dourado, todo cacheado. Ele, como odiava fantasiar-se mas era fã de cinema, vestiu-se a la James Dean, de jeans, camiseta e jaqueta de couro. Passou um gel no cabelo e levou o pente no bolso da calça, junto a dois ou três Marlboro só pra fazer pressão (Gabriel tem horror a cigarros).
Cada um no seu canto, e a música rodando solta. T-Rex no salão, na primeira frase de Hot Love "She's my woman in gold and she's not very old...". Gabriel se aproxima de Maria Rita, tira o pente do bolso, derruba um cigarro, abaixa, deixa-o escapar, levanta, põe o cigarro no canto da boca, passa o pente no topete duro de gumex e arrisca uma frase roubada da música, derrubando novamente o cigarro no chão...
- Você é dourada, e parece bastante jovem e animada pra dançar esta comigo.
Péssima. Terrível. Tão ruim, que Maria Rita sorriu e aceitou. Ele atribuiu o sucesso do convite ao cigarro, só mais tarde soube que Maria Rita não beijava homens com gosto de fumaça na boca.
Fim da primeira dança, ela tímida, sorri agradecendo e vai deixando a pista, quando Lennon e McCartney gritam "I wanna hold your haaaaaand". Gabriel a segura pela mão e pede mais uma dança. Só mais esta, ele adorava Beatles. Não deixou a mão direita de Maria Rita escapar pelos seus dedos como fizera com o cigarro. Nem reparou quando começou a música seguinte, e a beijou enquanto The Foundations pediam a Maria Rita que não estragasse tudo "So build me up Buttercup, don't break my heart...".
E foi lá que começou a história de Maria Rita e Gabriel, que dentre seus lovunications favoritos estava o de vestir-se como seus pais o faziam durante a juventude e ir ao Little Darling numa noite vazia, dançar ao som das músicas que escolhiam na jukebox. Era a maneira de celebrar os aniversários de namoro.
Dois anos depois do primeiro encontro, na comemoração, Gabriel tirou mais fichas do bolso e escolheu uma nova canção, que junto às anteriores, fez parte do CD que distribuíram em seu casamento. Porque dias antes deste pedido, quando ele ouviu, no caminho para seu escritório, violinos introduzindo a voz de Etta James, que cheia de emoção cantava "At last my love's come along.... my lonely days are over and life is like a song", percebeu que Maria Rita havia feito de sua vida tudo o que ele sempre sonhara: um filme completo, ora de aventura, comédia, romance, ora mudo, com trilha sonora e beijos apaixonados da mocinha linda, no final de cada cena.

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