sexta-feira, julho 13, 2007

Sexta-feira 13, a origem

A superstição que ronda o número 13 é, sem dúvida, uma das mais populares. Sua origem é pagã, e não cristã, como muitos pensam, e remonta a duas lendas da mitologia nórdica. De acordo com a primeira delas, houve no Valhalla, a morada dos deuses nórdicos, um banquete para o qual 12 divindades foram convidadas. Loki, deus do fogo, ficou enciumado por não ter sido chamado e armou uma cilada: ludibriou um deus cego para que este ferisse acidentalmente o deus solar Baldur, que era o favorito de seu pai, Odin, o deus dos deuses. Daí surgiu a idéia de que reunir 13 pessoas para um jantar era desgraça na certa.

A associação com a sexta-feira vem da Escandinávia e refere-se a Frigga, a deusa da fertilidade e do amor. Quando as tribos nórdicas e alemãs foram obrigadas a se converter ao cristianismo, a lenda transformou Frigga em bruxa, exilada no alto de uma montanha. Dizia-se que, para se vingar, ela se reunia todas as sextas-feiras com outras 11 bruxas e o demônio, num total de 13 entes, para rogar pragas sobre os humanos. Isso serviu para incitar a raiva e a animosidade das pessoas contra Frigga, embora nem sequer existissem figuras malignas como o Diabo nessas culturas. Como a sexta-feira era um dia consagrado à deusa e, portanto, ao feminino, o advento do patriarcado fez com que esse dia fosse o escolhido para ser um dia amaldiçoado, como tudo o que dizia respeito às mulheres - a menstruação, as formas arredondadas, a magia, o humor cíclico, o pensamento não-linear etc.

A Última Ceia, portanto, é uma posterior releitura dos mitos originais, onde havia 13 à mesa, às vésperas da crucificação de Jesus, que ocorreu em uma sexta-feira. O 13º convidado teria sido o traidor causador da morte de Jesus, exatamente como Loki foi o causador da morte do filho de deus.

A idéia do 13 como um indício de má sorte surge da concepção que o judaico-cristianismo tem da morte, que não é, necessariamente, a idéia que Jesus teria tido. Especula-se, inclusive, que Jesus, sendo um sábio iniciado, possa ter estipulado o número de pessoas à mesa em 13 precisamente por causa da magia do número. Nas cartas do tarô, o Arcano 13 é a carta da morte, até por uma possível associação com as letras hebraicas. Estudiosos da prática interpretam a carta como um sinal de mudanças de pontos de vista, de formas de viver, e profundas transformações internas e externas. Mesmo quando se refere à morte física, na concepção religiosa, esta não representa um fim em si mesma, afinal os povos antigos viam a morte como transmutação, uma passagem para outro mundo ou plano de existência, em geral com uma conotação evolutiva. Por esse motivo, as tradições de magia ocidental, como a Wicca (bruxaria moderna), sugerem o número de 13 participantes em rituais.

Lendas à parte, o fato é que, muitas pessoas, supersticiosas, evitam viajar na sexta-feira 13; a numeração dos camarotes de teatro omite, por vezes, o 13; em alguns hotéis não há o quarto de número 13, que é substituído pelo 12-a; muitos prédio pulam do 12º para o 14º andar, temendo que o 13º traga azar; há pessoas que pensam que participar de um jantar com 13 pessoas traz má sorte, porque uma delas morrerá no período de um ano. A sexta-feira 13 é, enfim, considerada um dia de azar e toma-se muito cuidado quanto às atividades planejadas para este dia.

Essa interpretação, porém, é tão arbitrária quanto regionalizada, já que em vários outros locais do planeta o número 13 é estimado como símbolo de boa sorte. O argumento dos otimistas se baseia no fato de que o 13 é um número afim ao 4 (1 + 3 = 4), sendo este um símbolo de próspera sorte. Na Índia, o 13 é um número religioso muito apreciado e os pagodes hindus apresentam normalmente 13 estátuas de Buda. Na China, é comum os dísticos místicos dos templos serem encabeçados pelo número 13. Também os mexicanos primitivos consideravam o número 13 como algo santo e adoravam, por exemplo, 13 cabras sagradas.

O que então faz a diferença? O que faz com que o número 13 e a sexta-feira sejam positivos para alguns e negativos para outros, e ainda neutros para outros?

Mais uma vez é tudo uma questão de sintonia. Somos o que pensamos, transformamo-nos naquilo em que acreditamos, vivemos naquilo em que criamos para nós mesmos. Cultivadas e difundidas há séculos, estas lendas vêm criando à sua volta todo um complexo espiritual e energético, alimentado e suportado pelas próprias mentes que crêem em seus relatos ou que, mesmo não conhecendo estes relatos, crêem nestas superstições.

Pensamentos e sentimentos são energia. Tudo o que pensamos e sentimos gera modificações vibratórias nas nossas energias, na nossa aura, no ambiente à nossa volta. E o mesmo acontece quando expressamos, ainda que silenciosamente, as nossas crenças, os nossos medos, as nossas superstições, opiniões, etc.

Crenças, símbolos, mitos e lendas cultivados por muito tempo e por muitas gerações tendem a criar imensos campos vibratórios coletivos (holopensenes), formados pelas emanações mentais e emocionais de todas as criaturas que, de alguma forma, se afinizaram e ainda se afinizam com os seus objetivos, princípios ou idéias. Como são muito grandes e também muito fortes, campos como estes podem perdurar por séculos ou nunca se extinguir se sempre houver alguém disposto a realimentá-los com suas crenças e idéias, modificando as energias ao seu redor e entrando em sintonia com aquelas energias.

Esses campos imensos estão por aí, suspensos, pairando sobre nós. Imaginemos, assim, o campo vibratório referente à desavisada "sexta-feira 13". Quantas e quantas criaturas o vêm realimentando? E há quanto tempo? Baseadas em quê? Lendas antigas? Ou mitos criados por religiosos que nada mais desejavam do que afastar os povos de suas crenças originais por meio do medo para alcançar mais poder?

De que tamanho será que ele está hoje? E a cada sexta-feira 13 que aparece no calendário ele se torna um pouco maior, e mais forte, alimentado por supersticiosos que insistem em continuar repetindo mecanicamente manias dos seus antepassados.

A sexta-feira e o 13, juntos ou separados, na verdade, nada podem. Eles mesmos não têm poder algum. São inofensivos. O poder está em quem acredita que eles têm poder. O poder, para o bem ou para o mal, está em que acredita que eles podem criar, gerar ou fazer o bem ou o mal. Assim, se alguém acreditar que a sexta-feira 13 dá ou traz azar, irá se conectar ao respectivo campo vibratório já existente, contaminando-se de toda a angústia, o medo e o terror armazenados lá, atraindo para si algo da energia "ruim" que há ali, podendo, assim, provocar algo de "ruim" em sua vida. Não é, portanto, a sexta-feira 13 que traz azar, mas o supersticioso que vai buscá-lo toda sexta-feira 13, com os seus pensamentos, o seu medo, a sua própria angústia e falta de confiança.

O problema é que há tanta gente adepta do dito popular "no creo en las brujas, pero que las hay, las hay", que, sempre que aparece uma sexta-feira 13, o ambiente fica mais pesado, pelas emanações das pessoas que, "só por precaução", ficam ligadas, procurando "sinais" de azar, tentando passar ilesas pelo dia amaldiçoado. E aí, fica parecendo que a superstição tem algum fundamento...

Fonte: Cláudia Hauy, socióloga. Extraído em parte da Revista Galileu.

terça-feira, julho 10, 2007

quarta-feira, julho 04, 2007

Do Eros nos ensinamentos de Diotima de Mantinéia - Esteban Reyes

O Amor, uma das vias possíveis para o filósofo atingir o Inteligível, a imortalidade.

Eros: Amor, desejo, princípio cosmológico. Eros é uma força motriz num modelo sexual usada para explicar o "casamento" e o "nascimento" dos elementos mitológicos, uma espécie de "Primeiro Motor". Em Parmênides ele é o daimon "que tudo guia". Nas cosmogonias órficas ele tudo une e, destas uniões, nasce a raça dos deuses imortais, neste caso, apresenta-se o amor como uma emoção humana elevada ao nível de uma força cosmológica. Empédocles considera o amor (philotes) e o conflito ou luta (neikos) como princípios de união e separação, respectivamente, dos elementos que constituem o universo. Contudo, Platão orienta o significado de Eros para um novo sentido onde o amor humano é reorientado em direção a um amor filosófico.
Poderíamos perguntar até que ponto o amor platônico é ainda um legado socrático, um conceito de passagem entre a filosofia imanente de Sócrates e a filosofia transcendente de Platão. A importância do amor, para Sócrates, fica evidente quando este afirma: não saber nada a não ser a respeito do amor. Se o amor em Sócrates já pressupõe a ultrapassagem do próprio ser em função do caráter demoníaco que resulta da inspiração erótica, em Platão ele aparece já como um amor verdadeiramente filosófico, cujo objeto será determinado.
Essencialmente Platão desenvolve o problema do Amor em três dos seus diálogos: Lísis, Banquete e Fedro, certamente nesta mesma ordem cronológica de redação. No primeiro, um diálogo aporético, Platão apresenta o problema do amor sem lhe dar um desenvolvimento maior. Já no segundo diálogo mencionado, o autor expõe extensamente este problema. E por último, no Fedro, são esclarecidos alguns pontos que ficaram em aberto no Banquete.
Resumidamente o Lísis trata do amor como philia, isto é, amizade, da essência da amizade. Pela primeira vez Platão busca uma definição desta atração entre os homens, sugere que talvez ela seja análoga à atração do semelhante pelo semelhante,ponto de vista rejeitado, assim como o da atração dos dissemelhantes. Logo a seguir, apresenta-se um princípio que remonta à teoria médica tendo aplicações importantes nas teorias contemporâneas do prazer (hedone): o desejo (epithymia) e o seu conseqüente, o amor, é dirigido para o preenchimento de uma falta (endeia) e o seu objeto, por conseguinte, é algo que é apropriado (oikeion), algo que não é idêntico nem totalmente dissemelhante e contudo deficiente na nossa constituição.
Se no Líses procurou-se saber quem deve manter amizade, no Banquete esse "quem" está de antemão indicado. Trata-se do Eros, não uma idéia, mas o próprio deus do amor, no sentido de afeto centralizado pelo sexo. Na sucessão dos discursos que elogiam Eros, acabamos encontrando a definição da sua natureza.
No Banquete, o amor é um desejo dirigido para o belo (kallos) e necessariamente envolve a noção de uma necessidade ou falta (endeia). Através de um mito, que teria sido revelado por Diotima de Mantinéia, Eros aparece como um grande daimon, um dos intermediários (metaxu) entre o divino e o mortal, entre a sabedoria e a ignorância. Eros é definido como o desejo de que o bem seja nosso para sempre, e também, como a procura por uma natureza mortal, da imortalidade que ele realiza gerando (genesis).
Em seguida, continua o relato dos ensinamentos de Diotima, com uma exposição do verdadeiro amor. O concurso dos belos corpos gera belos discursos (logoi). O amante afasta-se de um único corpo e torna-se um amante de todos os corpos belos, daí volta-se para as belas almas, as leis, observâncias, e o conhecimento (episteme), libertando-se sempre da ligação ao particular, até que "subitamente" lhe é revelada a visão da própria beleza, o belo em si (auto to kalon).
No Fedro, inicialmente, aparece a definição do Eros como um desejo irracional dirigido para o gozo da beleza. Mais tarde,esta significação é desdita. A irracionalidade do amor é, na verdade, um tipo de loucura divina (theia mania) e está presente na alma como reflexo da lembrança (anamnesis) que a alma tem dos eide que lhe foram revelados antes da sua "perda de asas". É a alma do filósofo que primeiro recupera estas asas pelo exercício da recordação que ela tem dos eide e pela orientação da sua vida em concordância. O filósofo é a isto estimulado pela visão da beleza terrena. É a beleza que particularmente move a nossa recordação porque ela opera através do mais agudo dos nossos sentidos, a visão.

O Banquete
O Banquete é um diálogo que apresenta os discursos de sete convivas sobre o amor. Dramaticamente, é talvez o mais bem-sucedido dos diálogos platônicos. Cada participante tem sua individualidade e a cada um compete fazer valer seus talentos individuais (orador, médico ou poeta). Platão prepara-nos gradualmente, para a revelação final, o poder filosófico do amor. Percorramos então este caminho.
Fedro fala como um jovem, mas como jovem que tem as paixões purificadas pelo estudo da filosofia. Faz de Eros o deus mais antigo e, por conseguinte, o mais venerável, suscitando no homem o desejo de virtude, fonte de heroísmo e de moralidade, uma definição que apenas reintroduz o sentido arcaico e tradicional da divindade.
Pausânias, homem amadurecido, a quem a idade e a filosofia tem-lhe ensinado o que a juventude não sabe, constrói sua argumentação sobre a distinção entre uma Afrodite celeste e uma Afrodite vulgar. Como há duas Afrodites, há dois Eros e duas formas de Amar.
Erixímaco expressa-se como médico, indo além do quadro estritamente humano, vê no amor a força que governa o mundo e rege os fenômenos, tanto biológicos quanto cosmológicos; define Eros como a união dos contrários, num discurso que tem ecos empedocleanos.
Aristófanes, com a eloquência do poeta cômico, ocultando sob uma forma burlesca pensamentos profundos, conta a história mítica do "andrógino". Os primeiros homens eram duplos (macho-macho, fêmea-fêmea, macho-fêmea) e Zeus, como castigo, os dividiu ao meio. Desde então os homens vivem na privação e nostalgia da outra metade. É disso que nasce o amor, marcado pela ausência e negatividade. A nostalgia do ser amado suscita o desejo, a penúria incita à busca, cada parte tateia à procura por sua metade perdida e da sua completude original. Eros, ao contrário do afirmado por Erixímaco, é a união dos semelhantes separados. Eros é um na sua essência, e sua função é, precisamente, recriar a unidade. Eros é o único deus a poder curar o mal que cinde originariamente o homem e trazer-lhe a felicidade: reencontrar no amor sua unidade original.
Agatão, jovem e belo verdadeira encarnação do kalos kagatos grego, é em honra por sua vitória no concurso de arte dramática que se realiza o Simpósion. Num elogio verboso e sofisticado, próprio do poeta, porém confuso, artificial e vazio, atribui a Eros todas as perfeições imagináveis.
Sócrates relata os ensinamentos da sacerdotisa Diotima de Mantinéia: Eros, "intermediário" entre os homens e os deuses, é um meio que permite ir mais além na direção do inteligível; ele nos inspira o desejo de ter sempre o bem; sua ação é uma geração que garante aos mortais a imortalidade que lhes é possível.
Alcibíades, que chega no decorrer do banquete, acompanhado de jovens pândegos, fecha com verve e paixão o diálogo, com um notável elogio a Sócrates e, por meio dele, à filosofia.

A imagem filosófica do amor:
Por mais ricos que sejam os cinco primeiros elogios do amor, em erudição, humor, imagens poéticas ou referências mitológicas, não passam de aproximações insuficientes, que qualificam o amor sem apreender sua natureza. Ao chegar a vez de Sócrates, a filosofia tem a palavra; há de falar-se da natureza do amor.
Eros deseja o que não possui, desejando o belo e o bom, está privado deles. Não poderia, portanto, ser um deus, já que está marcado por essa falta. Contudo, não é mortal. Será, então, um "intermediário" (metaxu) entre um e outro. Sendo meio e mediador entre dois mundos (sensível e inteligível, mortal e imortal), participa dos dois ao mesmo tempo. Mas também é um intermediário entre a ignorância e o saber, e por isso o amor é dito ser filósofo. Não sabe, mas sabe que não sabe. Eros está consciente da sua carência e aspira a preenchê-la, daí parte à conquista do saber, do bem, do belo, da imortalidade.

O mito genealógico:
Quando se trata de falar da genealogia do Amor, Platão abre mão da sua tradicional argumentação dialética, e nos oferece um curto, porém fascinante mito. Isto porque, sem dúvida, o Amor tem um fundo de mistério, e quando este se desvenda não é por demonstração, mas sim por revelação imediata.
Eros é um daimon,algo entre o mortal e o imortal, cuja função é essencialmente a de síntese, uma síntese das caraterísticas herdadas de seus pais. O mito do nascimento do Amornos apresenta Eros filho de Poros, ele mesmo filho de Mátis (Sabedoria, Inteligência prática) e Penia. O nome da mãe (Penia) pode ser traduzido sem dificuldades por pobreza, penúria, escassez, inópia, indigência. Já com o nome do pai (Poros), as coisas não são tão simples assim, há quem o traduza por "abundância", "fartura", "plenitude", "riqueza". Se fosse assim, teríamos o Amor como fruto de dois contrários, pobreza e riqueza, o que não é bem verdade. Poros, melhor traduzido, quer dizer recurso, passagem, abertura, saída. Deste modo Poros é aquele que tem saída para tudo, tem os recursos necessários para resolver os problemas.
Com tal natureza e função, a unidade desse daimon consiste em inspirar nos homens o desejo de possuir o que é belo e o que é bom não apenas momentaneamente, mas sempre. Ninguém ama verdadeiramente se ao mesmo tempo não deseja que seu amor dure para sempre. Eros não é só o amor do que é belo, mas da geração no que é belo. Por ter sido gerado no dia do nascimento de Afrodite, nasce sob o signo da beleza.
Eros herdou de seus pais uma feliz mistura, porém, não estável: mendigo e investigador, inquieto e apaixonado, pobre em bens materiais, mas rico em recursos potenciais, não tem nada, mas quer muito. Tem uma natureza dinâmica, mas instável, um caráter ardente, mas caprichoso, uma engenhosidade inventiva, mas insatisfeita. Está em penúria, mas conhece sua penúria; quer sair de si e aspira por saber, por beleza e por fecundidade.
O mito do nascimento do amor apresenta um Eros numa posição diametralmente oposta às fixadas pelos discursos anteriores. Contra Agatão que ressalta as virtudes do amor, temos fragilidade e instabilidade. Opondo-se a Pausânias, temos apenas um único Eros, porém, com uma unidade complexa e rica em virtualidades. Contra o mito de Aristófanes, Eros é inovador é fecundo, estimula o que ama, incita-o a criar e ir mais além. Abre-se para o inédito, inventa o novo e prolonga-se, a si mesmo, numa criação original.
Tanto no mito de Diotima quanto no de Aristófanes, aparece a idéia da dualidade do homem, conflituoso pelas contradições de sua natureza, dilacerado por suas carências e suas esperanças, pela fragilidade de seu ser e o ardor de suas aspirações. O próprio sentido de filosofia, para Platão, não deixa de ser uma tensão de todo o ser em direção a um objeto que não temos ou que já perdemos por esquecimento. Assim, este "amor pela sabedoria" é primeiro carência, consciência de uma carência, depois a implementação de recursos para suprir essa carência. Contudo, os ensinamentos de Diotima vão muito mais longe do que o mito de Aristófanes. O amor é muito mais do que a tensão de dois seres um face ao outro. O amor é "parto na beleza, de acordo com a alma e o corpo", é fecundo, procriador ou, de maneira mais geral, criador. Para além da hipótese de dois seres presos a um passado perdido, o amor convida à superação, abre-se ao inédito e assegura, mediante a criação, a passagem da mortalidade à imortalidade. A finalidade não é o prazer individual e imediato da beleza, mas sim, a perpetuação da vida por intermédio de um ato criador ao qual assiste a Beleza. A procriação é um atributo divino do animal mortal. Eros é, em última instância, o desejo de imortalidade. O amor, aqui, é uma tensão dinâmica e extrovertida, que estimula, enriquece e eleva o indivíduo que ama. O amor é motor para a transcendência.
Em todos os discursos sobre Eros, aparece a descrição do seu comportamento e dos seus impulsos. Contudo, para Diotima, o alvo dos seus impulsos é aqui, não o prazer superior da amizade masculina, entendida como um clima de virtude e uma condição de educação, nem aquela procura de uma metade perdida, que corrigiria em parte nossa irremediável mutilação, mas simplesmente os belos seres (ta kala).Como será visto mais adiante, belos podem ser os corpos, as almas, as leis, as ciências, etc. Eros amante da beleza, necessariamente terá que amar a sabedoria, bela entre as coisas mais belas, assim o Amor, conclui Diotima, é filósofo.

Dialética erótica:
A segunda parte dos ensinamentos da sacerdotisa Diotimapode ser considerado muito mais um discurso inspirado do que propriamente um mito. É um "mistério", uma revelação que se apresenta à maneira de uma narrativa iniciática. Essa narrativa apresenta três caraterísticas: é contínua; inspirada; e sugestiva e evocadora. Não é um mito mas se move no campo do mito platônico.
Segundo o discurso de Diotima o objeto do amor é o parto na beleza, tanto no corpo como na alma. Além da tensão em direção ao que não se tem, agora aparece um novo elemento: a fecundidade. O amor é fecundo, tanto na procriação ao nível do corpo, quanto ao nível intelectual ou espiritual. O amor é criação, motor para a transcendência. A partir da beleza sensível (deste mundo), vamos subindo degrau por degrau a escada que nos levará até a beleza em si, a beleza absoluta do mundo inteligível.
Quando o amante encontra uma bela alma, esta união amorosa gera não uma criança (paida), mas sim belos discursos (logos), com a finalidade de educar (paideuein). A partir da correspondência dos termos gregos, podemos entender paideuein com o sentido de "fazer uma criança", sendo assim os discursos podem ser considerados como "os filhos do amor espiritual". Com isto, os discursos com o propósito de educar, isto é, de fazer espiritualmente uma criança, são o fruto da geração de um novo ser, ser este que garante ao seu criador uma imortalidade desta vez ao nível espiritual, da alma.
Os graus, ou "degraus" da iniciação à beleza são na realidade três, cada um deles dividido, por sua vez, em dois momentos. Primeiro o amante afeiçoar-se-á a um corpo belo, então fará belos discursos; depois verá que a beleza de um corpo é irmã da beleza de todos os outros, assim, passará a amar todos os corpos belos. O segundo degrau permite passar do amor pelos corpos ao amor pelas almas. O verdadeiro discípulo do Eros afeiçoar-se-á, num primeiro momento, a uma alma em particular, para depois descobrir a beleza moral, a dos atos, que torna belas todas as atividades e comportamentos humanos. Já a terceira etapa, o iniciado passará dos atos às ciências. Aqui, também, num primeiro momento o amor será amor das particularidades das ciências para, em seguida, expandir-se num amor pela ciência ou saber em geral, e enfim alcançar a ciência única, a da Beleza.
Lá subitamente desvenda-se a beleza eterna e única, o Belo em si e por si, contempla-se a verdade nela mesma, a beleza divina nela mesma, na unidade da sua forma. A iniciação tendo sido lenta e gradual, a revelação, no entanto, é súbita e instantânea. Livre da multiplicidade das aparências e da volubilidade das opiniões, sua existência reside inteiramente na sua essência. O amor deixa de ser tensão e tendência em direção àquilo de que ainda estava desprovido. Enfim, terminam após tantas lutas "as dores do parto".
Este é, não só, um momento de êxtase, como também místico: "êxtase" porque o discípulo sai fora de si na contemplação do belo transcendente; e "místico" porque é uma coisa tão oculta, que só se revela ao fim de uma longa iniciação pela qual poucos passam.
O que no Lísis é denominado de Primum Amabile, agora, no Banquete, é apresentado como sendo o Belo em si. Este Belo em si eqüivale à Idéia de Bem, na República, e a ascensão erótica, narrada por Diotima, não é outra coisa do que a fórmula estética da dialética platônica.

Um esquema que bem reproduz esta ascensão erótica, é o apresentado por Geneviève Droz:

Idéia do Belo Amor pela Beleza em si
e por si
Amor pela ciência
Educação intelectual
Amor pelas ciências
Amor pelas belas ações,
pela beleza moral
Educação moral
Amor por uma alma bela
Amor por todos os corpos belos,
pela beleza corporal
Educação estética
Amor por um corpo belo
O elogio à filosofia:

O apaixonado Alcibíades é responsável pelo fechamento do diálogo. Este faz um discurso enamorado e nos apresenta um Sócrates numa posição semelhante a do Eros. Assim como no dia da geração de Eros que Poros estava embriagado,agora no dia do elogio a Sócrates é Alcibíades, o responsável por esse discurso, quem está bêbado; e se todo se passa no dia do banquete em comemoração a Afrodite, agora o banquete é em comemoração a Agatão o mais belo (kalliston).
Sócrates não é belo nem feio, mas sedutor e encantador; é pobre e tem os pés descalços, mas está sempre em busca de enriquecimento interior; é ingênuo, mas engenhoso caçador de verdades. Por sua estranheza e pelo mistério que emana de sua personalidade feita de contrastes é, ele mesmo, uma figura daimônica, mediador e traço de união entre os homens e os deuses. Destarte, a filosofia é amor, o amor é filósofo, e Sócrates é o protótipo acabado dessas duas mediações salvadoras. Sócrates como "a imagem total do Amor". O elogio a Sócrates representa o "coroamento" do Banquete.

CONCLUSÃO
Podemos observar um certo paralelismo entre a alegoria da caverna e o discurso que Sócrates atribui a Diotima de Mantinéia. Na República é descrito o processo de conversão das consciências à luz. Parte-se das sombras até chegar às Idéias. Já no Banquete temos uma "ascese erótica", onde Eros desempenha em relação aos sentimentos e às emoções o mesmo papel de intermediário que as entidades matemáticas representam para a vida intelectual. Eros comanda a subida por via da atração que a beleza dos corpos exerce sobre os sentidos e remete à contemplação da Idéia do Belo, o Belo em si. Esse é o sentido da dialética do desejo que o Banquete analisa no plano do sentimento, e que a República e a Carte VII analisam no plano do conhecimento.
Em Platão encontramos a construção do conhecimento constituído pela união de intelecto e emoção, de razão e vontade: a episteme é o fruto de inteligência e amor. O essencial continua sendo: a Verdade, o Bem e a Beleza, três manifestações diferentes da mesma e única realidade suprema. Enfim compreendemos o ensinamento de Diotima, do próprio Platão, Eros é metaxu: intermediário entre contrários (pobreza/abundância, ignorância/saber); Eros é, também e sobretudo, intermediário entre o humano e o divino, entre o sensível e o inteligível, entre o mortal e o imortal.
Eros é o próprio desejo da imortalidade. Esta é a única imortalidade possível para o homem, tanto pelo corpo, quanto pela alma. No primeiro caso, a imortalidade, se produz pelo nascimento dos filhos, pela sucessão e substituição de um ser idoso por um outro ser juvenil. Entretanto por cima desta produção e desta imortalidade corporal, há as do segundo caso, segundo o espírito. Estas são próprias do homem que ama a beleza da alma, e que trabalha para produzir numa alma bela, que o tem seduzido, os rasgos da virtude e do dever. Desta maneira, o homem perpetua a sabedoria que na sua alma se alojava e assegura um tipo de imortalidade superior à primeira. Este é o homem verdadeiramente virtuoso, o filósofo, o verdadeiramente imortal.