terça-feira, dezembro 19, 2006

A inocência do amor - Silvia Curiati

As onze badaladas surdas cortando o breu da noite foram o sinal para que ele saísse sorrateiro, deixando um rastro de adrenalina que fez Milu levantar a cabeça e farejar as intenções de seu dono.

Era a melhor hora do dia para boiar. Brisa fria, água fria, terra fria. O conjunto dava-lhe a sensação de que sua cabeça e seu coração esfriavam um pouco também.

Tirou a roupa e mergulhou abrindo os olhos, como se buscasse estrelas tocando o chão. Subiu de volta e apontou o umbigo para a lua, fechando os olhos para não cair à tentação de fazer um pedido a uma estrela cadente que insistisse em atravessar o seu caminho. Sabia o que pediria, e também sabia que era impossível sua realização. Profilaxia: enquanto não conseguisse pensar em outra coisa, não olharia mais para o céu.

A água não o abraçava porque ninguém mais o fazia. Ela o carregava como mãos desconhecidas, se aquele fosse o corpo de um herói.

Ele lembrou-se de quando era criança pedindo uma menininha da escola em namoro, esperando sua resposta por uma semana. Queria reviver aquela sensação de tranqüilidade e desprendimento. Esperou por sete dias sem cogitar sequer uma vez se a menina aceitaria ou não. Tudo era mais importante: o campeonato de futebol de salão, a prova de ciências, a ida ao Playcenter no sábado. Difícil resgatar a inocência do amor infantil.

Podia jurar que a água ao redor de seu corpo esquentava, quase formando bolhas. Pensou, sem querer, no rosto desta outra menina que o assombrava há meses. Abriu os olhos e empurrou seu corpo para o fundo d'água, pulmões vazios, tentando eliminar toda a oxigenação que tornasse possível a formação de uma imagem nítida em sua mente. Foram 6 minutos.

Nadou até a margem, saiu e caminhou nu, sem secar-se, plantando-se debaixo de uma árvore o resto da noite. Esgotar o pensamento lhe daria dores na cabeça e o libertaria. Doeu, tinha razão.

Voltou à casa seis horas depois, agarrando com firmeza as rédeas de um cavalo que havia desaparecido. Calçou um par de pantufas e foi tomar um copo de leite, brindando consigo sua nova vida.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

"Parerga e Paraleponema" no "Diário do Nordeste"


Já na sua terceira aparição na mídia escrita, o "Parerga e Pareleponema" foi indicado mais uma vez como um blog de divercidade. No site do jornal Diário do Nordeste, na coluna "Pop Up" podemos conferir o pequeno texto em que o nome do blog é definido como "estranhíssimo". Para os que viram a matéria e apareceram por aqui para me agradecer ou parabenizar, obrigado. Aos curiosos, o nome do blog vem do título de um livro de um autor muito citado por aqui, Arthur Schopenhauer, filósofo alemão (1788-1860), e significa "discurssões e refurtações". Como me proponho a discurssão e as n refurtações já demosntradas na história desse blog, é explicado seu sentido. Meu objetivo é único, ter "mais uma forma de expressão, sem pretensões e nada mais...". Tudo ou nada disso!

Republicação: Dance Monkeys, Dance

Música: Final Fantasy Piano

terça-feira, dezembro 12, 2006

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Rave: Um ritual tribal contemporâneo - Carolina Borges

Rituais tribais existem desde os primórdios da humanidade. As sociedades tribais arcaicas utilizavam os rituais como forma sagrada de conexão com a natureza e seus deuses. Através de danças coletivas, música repetitiva, ervas para abertura da percepção, entre outros ritos, os povos tribais celebravam e se conectavam com os aspectos transcendentais da vida. A vida pulsando em Gaia.

Quando o ponto de conexão e sociabilidade entre os seres humanos se dá através da ressonância de afetos, da similaridade do modo de experimentar e vivenciar a vida, estamos diante de uma tribo; na medida em que a intenção da convivência é genuína e não imposta por alguma lei.

A história da civilização, a formação dos estados, a industrialização, e todas as leis e instituições hierárquicas – religiosa, política, econômica - aos poucos foram eliminando os aspectos tribais das relações, através da domesticação, catequização, e imposição de valores e verdades a fim de beneficiar as instâncias de poder e comando.

De selvagens, tribais e guerreiros, os habitantes de Gaia transformaram-se em um grande e maciço rebanho de ovelhas. Vidas foram sugadas através das leis, instituições e a imposição de um tempo artificial, a fim de homogeneizar as vidas do rebanho e conseqüentemente facilitar o controle do poder.

A natureza foi perdendo sua soberania, os próprios humanos que antes à veneravam, começaram a destruí-la e explorá-la. Os rituais deixaram de ser tribais e pagãos, dando origem a celebrações religiosas institucionalizadas de caráter transcendental, na qual a desvalorização do corpo e da vida telúrica, transformaram-se em realidade. O rebanho agora não celebra a vida, e sim, a “vida além da vida”. Com o fim dos rituais e celebrações tribais, deu-se início a era das celebrações mórbidas conduzidas por ideais acéticos.

Final do século XX, a humanidade chegando ao seu limite de artificialidade - através do desenvolvimento tecnológico, da ausência de relação com a natureza de Gaia, do rebanho/homem sendo conduzido por valores competitivos e progressistas - dá um “salto quântico em ondas espirais”, com o surgimento no final da década de 80 na Inglaterra das primeiras raves.

Com grande semelhança às cerimônias indígenas religiosas dos índios norte americanos Pow wows, tem-se início o retorno do sentido tribal e transcendental através da música eletrônica e a sua estrutura repetitiva – remetendo aos sons tribais produzidos durantes os rituais – o DJ como um xamã, conduzindo o êxtase e a vibração. A volta do paganismo e seu aspecto hedonista, na medida em que as relações entre os freqüentadores estão além de controles e comandos institucionais.

O ciberespaço como superfície de afeto e trocas de informações entre os ravers, Gaia pulsando com os fluxos de informações e conexões de seus habitantes.

Este ritual contemporâneo evidencia a transformação sem precedentes que vivenciamos, pois se trata de um ritual tribal planetário gerado somente e através da tecnologia, possuindo características idênticas em qualquer região de Gaia. Cidades nômades são formadas - em lugares onde há predominância da natureza - por alguns dias e vidas compartilhadas durante este ritual. Estamos diante de um forma de zona autônoma temporária (TAZ), evidenciando o aspecto anárquico e caótico que as raves apresentam, por tratarem de encontros e trocas de afetos sem controles e leis.

Eis a tecnologia proporcionando um retorno ao arcaico. Habitantes de Gaia retornam às suas condições de selvagens, assim como a natureza recupera seu aspecto soberano. Embora em lugares naturais e selvagens, as raves possuem a artificialidade em sua essência, visto que é a tecnologia o elemento que viabiliza este ritual.

É através do ciberespaço que as trocas de informações, como detalhes de horas e locais são realizados. A música é eletrônica, produzida através de softwares, as imagens projetadas são criadas também através de softwares, a importância da estética do corpo, a substancia psycoativa (MDMA) para estímulo e abertura da percepção é sintética e produzida em laboratórios, tudo isso gerando um ritual pós-moderno de alguns dias, onde os habitantes de Gaia dançam e celebram coletivamente. O retorno do arcaico, na medida em que os principais aspectos dos rituais tribais ficam evidenciados.

Consumo excessivo de substancias psycoativas, apropriação da rave como produto de consumo e alienação, coexistem com o movimento refletindo a atual sociedade que habita Gaia. Assim como os rituais tribais arcaicos refletiam cada tribo, a rave sendo o ritual tribal contemporâneo vai refletir a atual sociedade planetária. Impossível falar da atual sociedade sem falar de excesso de consumismo.

Rave como levante, zona autônoma temporária de sociabilidade humana, linha de fuga, subversão, anarquismo caótico, nomadismo, tribo, coletividade, festejo, celebração, paganismo, xamanismo, desterritorialidade, ritual. A era pós-moderna de Gaia e o surgimento do neo tribalismo.

"A TAZ envolve um crescimento do manso para o selvagem, um retorno que é, igualmente, um passo a frente. Uma lógica do caos, um projeto de elevados ordenamentos de consciência ou simplicidade de vida que se aproxima em um surfar nas ondas dianteiras do caos, de um complexo dinamismo. A TAZ é uma arte de vida em contínuo surgimento, selvagem, mas gentil...”


A última lágrima do desespero humano



“Deus é uma lágrima de amor derramada o mais profundo segredo sobre a miséria humana” - Feuerbach

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Aos que vierem depois de nós - Bertolt Brecht

Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
[(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.


Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

Um simples almoço de domingo - Silvia Curiati

Foi comprar o almoço de domingo com seu pai, e voltou diferente.
A mãe queria uma saladinha leve, a irmã um x-maionese. Anita, como sempre, pediria uma porção de fritas enquanto jogava palitinho com seu pai, esperando os pratos ficarem prontos.

Saíram de casa às 13:10, caminharam por 3 minutos em direção à lanchonete e entraram. Pediram a comida, esperaram precisamente 17 minutos, pagaram e saíram do local, com os pacotes cheirando gostoso.

Foi quando olharam para o céu e viram uma coisa estranha movendo-se por entre nuvens escuras demais. Pararam e ficaram admirando o OVNI, tentando eliminar as duas últimas letras desta sigla misteriosa. "Deve ser um helicóptero", "não, eles não voam assim... um balão, talvez?" "hum, acho difícil."

Chegaram em casa às 17:34, como se nada houvesse acontecido. A mãe e a irmã estavam desesperadas, de fome e susto. O pai e Anita juravam não ter demorado mais que os 23 minutos de sempre, talvez 25 contando com a parada para admirar o céu.

O fato é que a comida estava fria, a salada um tanto murcha.
E Anita até hoje apita ao passar em qualquer detector de metais, mesmo que esteja nua.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Se Fossemos Infinitos - Bertolt Brecht



Se Fossemos infinitos
Tudo mudaria
Como somos finitos
Muito permanece.