segunda-feira, dezembro 11, 2006

Rave: Um ritual tribal contemporâneo - Carolina Borges

Rituais tribais existem desde os primórdios da humanidade. As sociedades tribais arcaicas utilizavam os rituais como forma sagrada de conexão com a natureza e seus deuses. Através de danças coletivas, música repetitiva, ervas para abertura da percepção, entre outros ritos, os povos tribais celebravam e se conectavam com os aspectos transcendentais da vida. A vida pulsando em Gaia.

Quando o ponto de conexão e sociabilidade entre os seres humanos se dá através da ressonância de afetos, da similaridade do modo de experimentar e vivenciar a vida, estamos diante de uma tribo; na medida em que a intenção da convivência é genuína e não imposta por alguma lei.

A história da civilização, a formação dos estados, a industrialização, e todas as leis e instituições hierárquicas – religiosa, política, econômica - aos poucos foram eliminando os aspectos tribais das relações, através da domesticação, catequização, e imposição de valores e verdades a fim de beneficiar as instâncias de poder e comando.

De selvagens, tribais e guerreiros, os habitantes de Gaia transformaram-se em um grande e maciço rebanho de ovelhas. Vidas foram sugadas através das leis, instituições e a imposição de um tempo artificial, a fim de homogeneizar as vidas do rebanho e conseqüentemente facilitar o controle do poder.

A natureza foi perdendo sua soberania, os próprios humanos que antes à veneravam, começaram a destruí-la e explorá-la. Os rituais deixaram de ser tribais e pagãos, dando origem a celebrações religiosas institucionalizadas de caráter transcendental, na qual a desvalorização do corpo e da vida telúrica, transformaram-se em realidade. O rebanho agora não celebra a vida, e sim, a “vida além da vida”. Com o fim dos rituais e celebrações tribais, deu-se início a era das celebrações mórbidas conduzidas por ideais acéticos.

Final do século XX, a humanidade chegando ao seu limite de artificialidade - através do desenvolvimento tecnológico, da ausência de relação com a natureza de Gaia, do rebanho/homem sendo conduzido por valores competitivos e progressistas - dá um “salto quântico em ondas espirais”, com o surgimento no final da década de 80 na Inglaterra das primeiras raves.

Com grande semelhança às cerimônias indígenas religiosas dos índios norte americanos Pow wows, tem-se início o retorno do sentido tribal e transcendental através da música eletrônica e a sua estrutura repetitiva – remetendo aos sons tribais produzidos durantes os rituais – o DJ como um xamã, conduzindo o êxtase e a vibração. A volta do paganismo e seu aspecto hedonista, na medida em que as relações entre os freqüentadores estão além de controles e comandos institucionais.

O ciberespaço como superfície de afeto e trocas de informações entre os ravers, Gaia pulsando com os fluxos de informações e conexões de seus habitantes.

Este ritual contemporâneo evidencia a transformação sem precedentes que vivenciamos, pois se trata de um ritual tribal planetário gerado somente e através da tecnologia, possuindo características idênticas em qualquer região de Gaia. Cidades nômades são formadas - em lugares onde há predominância da natureza - por alguns dias e vidas compartilhadas durante este ritual. Estamos diante de um forma de zona autônoma temporária (TAZ), evidenciando o aspecto anárquico e caótico que as raves apresentam, por tratarem de encontros e trocas de afetos sem controles e leis.

Eis a tecnologia proporcionando um retorno ao arcaico. Habitantes de Gaia retornam às suas condições de selvagens, assim como a natureza recupera seu aspecto soberano. Embora em lugares naturais e selvagens, as raves possuem a artificialidade em sua essência, visto que é a tecnologia o elemento que viabiliza este ritual.

É através do ciberespaço que as trocas de informações, como detalhes de horas e locais são realizados. A música é eletrônica, produzida através de softwares, as imagens projetadas são criadas também através de softwares, a importância da estética do corpo, a substancia psycoativa (MDMA) para estímulo e abertura da percepção é sintética e produzida em laboratórios, tudo isso gerando um ritual pós-moderno de alguns dias, onde os habitantes de Gaia dançam e celebram coletivamente. O retorno do arcaico, na medida em que os principais aspectos dos rituais tribais ficam evidenciados.

Consumo excessivo de substancias psycoativas, apropriação da rave como produto de consumo e alienação, coexistem com o movimento refletindo a atual sociedade que habita Gaia. Assim como os rituais tribais arcaicos refletiam cada tribo, a rave sendo o ritual tribal contemporâneo vai refletir a atual sociedade planetária. Impossível falar da atual sociedade sem falar de excesso de consumismo.

Rave como levante, zona autônoma temporária de sociabilidade humana, linha de fuga, subversão, anarquismo caótico, nomadismo, tribo, coletividade, festejo, celebração, paganismo, xamanismo, desterritorialidade, ritual. A era pós-moderna de Gaia e o surgimento do neo tribalismo.

"A TAZ envolve um crescimento do manso para o selvagem, um retorno que é, igualmente, um passo a frente. Uma lógica do caos, um projeto de elevados ordenamentos de consciência ou simplicidade de vida que se aproxima em um surfar nas ondas dianteiras do caos, de um complexo dinamismo. A TAZ é uma arte de vida em contínuo surgimento, selvagem, mas gentil...”


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