quarta-feira, novembro 29, 2006

O quê é religião? - Rubem Alves

"Vivemos em uma guerra permanente com nós mesmo. Somos incapazes de ser felizes. Não somos o que desejamos ser. O que desejamos ser jaz oprimido... E é justamente aí, diria Feuerbach, que se encontra a essência do que somos. Somos o nosso desejo, desejo que não pode florescer. Mas, o pior de tudo, como Freud observa, é que nem sequer temos consciência do que desejamos. Não sabemos o que queremos ser. Não sabemos o que desejamos porque o desejo, reprimido, foi forçado a habitar as regiões do esquecimento. Tornou-se inconsciente.
Acontece que o desejo é indestrutível. E lá, do esquecimento em que se encontra, ele não cessa de enviar mensagens cifradas - para que seus captores não as entendam. E elas aparecem como sintomas neuróticos, com os lapsos e equívocos, como sonhos... Os sonhos são a voz do desejo. Aqui nasce a religião, como mensagem do desejo, expressão de nostalgia, esperaça de prazer..."

domingo, novembro 26, 2006

Sabemos demais - Roberto Damatta

Dedico esta meditação aos que baniram do seu mundo o “eu não sei” e o conseqüente reconhecimento da ignorância que faz o mundo avançar. Impressiona-me o fato de jamais ter ouvido de nenhum homem público um trivial e humano “isso eu não sei”. Penso que os caras devem ser muito preparados, mas daí vem a perplexidade: se eles sabem tudo, se conhecem demais todos os problemas, por que então nada é resolvido?
Olhando a movimentação dos poderosos confirmados ou recém-inaugurados pelas urnas, esses que ontem sabiam tudo do mundo e do Brasil, estou convencido de que um dos maiores paradoxos brasileiros é o saber demais. É ter um conhecimento quase imoral de todos os problemas e, não obstante toda essa sabedoria, não resolver p@##a nenhuma. Talvez esse “saber demais” seja uma maldição pós-moderna: o saber tudo nos leva a não fazer nada.
De onde vem esse “saber demais”? Quais as suas marcas? A primeira é a sua associação a uma visão de mundo avessa, alérgica e distanciada do resultado ou da prática. Antigamente chamava-se “bacharelesco” esse tipo de conhecimento que passava pelas lombadas dos livros e pelos nomes dos autores, deixando de lado suas aplicações, contextos, resultados e, sobretudo, limites. O floreado sendo mais básico do que o argumento e a crítica. Suas implicações práticas jamais eram vistas, pois não seria - como ainda não é - de bom tom cobrar pragmatismo dos sábios, sobretudo quando eles acumulam sapiência com o poder de nomear, conceder ou exonerar, por exemplo.
A segunda característica desse “saber tudo” é a idéia de que a realidade pode ser conhecida à exaustão. Que os fatos da natureza e da vida social podem ser esgotados na sua lógica, dinâmica e essência. Que existem realmente teorias que respondem a todas as questões, dirimindo todas as dúvidas, porque as únicas questões possíveis são aquelas formuladas pelos sábios que conhecemos, lemos e admiramos. Pior que isso, que existem pessoas que “sabem tudo” e, por isso, são as mais adequadas para nos governar.
Há uma correlação entre “saber demais” e elites pequenas, densas hiperconscientes, ignorantes e sovinas. Em toda sociedade hierarquizada, o saber é mais um recurso na manutenção dos seus círculos de poder. Para “subir” é preciso saber o caminho das pedras. Deve-se conhecer as pessoas certas ou estar no partido adequado para ser reconhecido. Não é fácil entrar no clube dos afortunados que rompem o duro cerco do anonimato e chegam ao “nirvana social”. O patamar dos que não pensam mais em usar nenhuma versão do “Você sabe com quem está falando?”.
Sendo parte da casta das “unanimidades nacionais”, esses brâmanes formam, como ocorre entre os Bruzundangas de Lima Barreto, o círculo dos que “sabem tudo”. Dos que tudo podem dizer e, melhor que isso, dos que nada precisam fazer ou prestar contas. Nesses sistemas, o brilho engloba a integridade.
O exato oposto acontece nos sistemas igualitários, nos quais cada segmento (ou, se quiserem, classe social) tem o seu saber. Tem sua visão de mundo que está, como as pessoas, em conflito e disputa com as outras. Cansei de ouvir, nos Estados Unidos e na velha Inglaterra, a expressão “o seu ponto contra o meu”, significando a sua perspectiva, sua visada das coisas, seu conhecimento do problema.
Essas são as sociedades com professores e sábios, mas sem sabichões. Sistemas nos quais o conhecimento disso ou daquilo - do crescimento econômico, da segurança pública, da educação, da imprensa, dos livros, etc. - passa por muitos, democrática e igualitariamente. Essas são as sociedades com muitos recomeços, experiências e revoluções. Aqui temos muitos pontos de vista, o que conduz a uma visão crítica dessa crença numa sabedoria essencial, típica de sistemas em que educação significa primordialmente pose, falar difícil e boas maneiras, não a ausência de ignorância.
Credos mínimos estruturam essas culturas. Por exemplo: o “First come, first serve” (quem primeiro chega, primeiro é atendido) é um dos princípios fundamentais do igualitarismo moderno que ainda não precisou de “regulamentação” por nenhum jurista de fala enrolada e de linguagem criptográfica, com o fito de limitá-lo às elites.
O problema das sociedades dos que sabem demais é a sua aversão às aplicações práticas; o famoso teste de comer o pudim que eventualmente limita as teorias. O resultado, estamos todos fartos de testemunhar, é que sabemos tudo o que deve ser feito, mas as soluções - despoluir a baía, acabar com uma polícia parada, lidar com menos preconceito contra o nosso racismo, desregular onde é preciso para regular firmemente onde é necessário e, mais que isso, aplicar, decidir, resolver, prender e punir - são teorias. E em política, a teoria pura é quase sempre desesperança e utopia.
Tudo se passa como se o nosso fado fosse o de saber tudo e não fazer nada; ao passo que onde não se sabe experimenta-se, subordinando o saber ao teste, pois somente assim a teoria se transforma num meio de resolver questões. Mas como compensação para toda essa sabedoria.

link: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=383604

Filosofia - Chico Buarque

O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome.

Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente assim.
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Para ninguém zombar de mim.

Não me incomodo
Que você me diga
Que a sociedade
É minha inimiga.
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba
Muito embora vagabundo.

Quanto a você
Da aristocracia
Que tem dinheiro
Mas não compra alegria
Há de viver eternamente
Sendo escrava desta gente
Que cultiva hipocrisia.

terça-feira, novembro 14, 2006

Klav Kalash

Receta en español del Klav Kalash:

Duración: 30 min
Para 4 personas (seguro que nadie lo prueba)

Ingredientes:
600 gr de carne de carnero
600 gr de carne de cordero
4 tomates
3 pimientos
media cebolla grande (o 1 pequeña pero seguiremos la transcripción literal)
agua
aceite
sal
pimienta
otros condimentos al gusto de cada uno
palo (no bol, palo, palo)
salsa de cangrejo de mar (para beber le va bien el jugo de cangrejo, no de montaña)

Preparación:
Cortar la carne en pequeños tacos, los pimientos y la cebolla en pequeñas tiras y machacar los tomates.
Poner (o hacer, es que ese verbo tiene dos significados) todos esos ingredientes en una olla, sazonarlo con especies fuertes y añadir algo de agua. Entonces mezclar y presionar la masa hasta formar una gran bola (de beisbol, de tenis o de lo que te de la gana).
Esta bola se cubrirá de aceite y se asará en una parrilla o en una sartén (hay quien puede construirse su propio horno de piedra si lo prefiere)
Cuando la bola esté en su punto (al dente), fijarla sobre un palo. Pringar (así sale en el diccionario) con la salsa de cangrejo. Au, bon profit.



segunda-feira, novembro 13, 2006

300




Sobre Esparta


"Este é meu escudo.
Em combate, eu o levo à minha frente,
mas ele não é só meu.
Protege o meu irmão à minha esquerda.
Protege minha cidade.
Nunca deixarei meu irmão
fora de sua proteção
nem minha cidade sem seu resguardo.
Morrerei com meu escudo em minha frente
enfrentando o inimigo"

domingo, novembro 12, 2006

Charlatanismo: A Parapsicologia - Alejandro J. Borgo

A parapsicologia é uma disciplina que se enquadra dentro das pseudociências. Tem a duvidosa honra de ser a única pseudociência experimental, embora – a rigor – seja difícil chamar de experimento um teste de parapsicologia. Os fenômenos parapsicológicos ou fenômenos “psi” foram arbitrariamente divididos em:
– Telepatia, ou captação do conteúdo mental de outra pessoa.
– Clarividência, ou captação extra-sensorial de um objeto ou acontecimento objetivo.
– Precognição, ou captação extra-sensorial de acontecimentos futuros.
– Psicocinese, ou influência da mente sobre a matéria.
Os três primeiros pertencem à mal chamada percepção extra-sensorial, e o último engloba o grupo de fenômenos “físicos”. A parapsicologia concebe a mente como uma entidade separada do corpo e, em alguns casos, os parapsicólogos afirmam que os fenômenos não pertencem ao âmbito do mental, pondo a “psi” em um nível que estaria “mais além do psíquico ou mental”. Os fenômenos psi seriam:
a) independentes do espaço e do tempo;
b) erráticos, ou seja, não se pode saber quando vão apresentar-se;
c) involuntários; e
d) inconscientes.
Vejamos:
a) Ao serem independentes do espaço e do tempo, violam várias leis físicas, mas os parapsicólogos – em vez de duvidar da existência de um fenômeno tão peculiar – sustentam que é preciso reformar toda a física para que psi possa ser explicada (quando nem sequer está demonstrado que exista).
b) Com a desculpa da erraticidade, os parapsicólogos podem explicar seus fracassos dizendo que “como é errático, o fenômeno desta vez não se apresentou”. Quando obtém um resultado positivo dizem “desta vez se apresentou”. Isto é equivalente a afirmar que um remédio para a dor de cabeça deu resultado depois que a dor passou. Se a dor não passa, então se recorre à explicação seguinte: algo inibiu o efeito do remédio, a concentração dos componentes não era a correta, o paciente não estava predisposto, etc, etc.
c) Estes pretensos fenômenos não podem ser manejados à vontade, de maneira que não se pode propor a produção de um fenômeno a bel-prazer, em qualquer momento ou lugar. Esta vulgar desculpa é também freqüentemente usada pelos supostos “mentalistas”, “videntes”, etc., quando a colher não se dobra ou as cartas não se acertam.
d) Outra característica – dizem os parapsicólogos – é que os fenômenos psi são inconscientes. Não se sabe quando nem como se experimenta a telepatia ou a clarividência. Às vezes pode-se perceber algo extra-sensorialmente e “transformá-lo” em uma sensação de tristeza, alegria, dor, sem dar-se conta de que se trata de um fenômeno psi genuíno. Com o mesmo rigor podemos dizer que temos um dragão verde dentro de nossa cabeça, só que o dragão dá um jeito para desmaterializar-se cada vez que nos tiram uma radiografia ou se “transforma” em uma sensação de calor, ansiedade, etc, etc.
Como vemos, a parapsicologia ignora a física, a biologia, a psicologia científica e todo e qualquer conhecimento que provenha da ciência. Não possui uma teoria que explique satisfatoriamente como um ente imaterial (psi) pode interagir com um sistema material (o cérebro). Tentou-se correlacionar os fenômenos psi com diversos aspectos: a personalidade, a atitude crédula ou incrédula, os estados alterados da consciência, a idade, o sexo, e se utilizou uma grande gama de instrumentos para levar a cabo investigações delineadas para pôr à prova a hipótese da existência de psi.
Fica ridículo começar a correlacionar a psi com qualquer característica ou habilidade se ainda não se provou sequer sua própria existência. Por isso dizemos que a parapsicologia não faz experimentos propriamente ditos. Primeiro deveria provar que a variável crucial psi existe. De igual maneira poder-se-ia propor a existência dos duendes plutonianos, os quais são invisíveis, erráticos e independentes do espaço e do tempo e começar a correlacionar sua presença com o estado de ânimo das pessoas, a personalidade, etc., sem corroborar primeiro que realmente existam.
Pelo que se vê, a parapsicologia está longe de transformar-se em uma ciência, apesar de que os parapsicólogos falam de “parapsicologia científica” ou “nova ciência”. Mais de 100 anos de pesquisas não conseguiram provar um só fenômeno psi. Foram feitos testes com animais, com plantas, com material subatômico, com cartas, desenhos, estados alterados de consciência, drogas, etc. Foram publicados experimentos assombrosos, mas quando se tentou repeti-los, o resultado foi o fracasso, com as conseqüentes desculpas pseudoexplicativas. As mais prestigiosas revistas dedicadas à parapsicologia deveriam publicar os milhares e milhares de testes que produziram resultados negativos para a hipótese psi.
Tendo em conta as objeções precedentes, devemos agregar a fraude, seja ela por parte dos investigadores ou pelos sujeitos “dotados” ou “sensitivos” que fazem trapaça durante os experimentos. Vários ilusionistas peritos têm recomendado que um mágico experimentado se encontre presente quando se faz uma investigação com sujeitos como o famoso Uri Geller, tão propensos à fraude. E o panorama desalentador se completa mencionando os delineamentos experimentais defeituosos, as análises estatísticas errôneas e outras falhas do gênero.
Antes de afirmar que psi existe, os parapsicólogos deveriam resolver certos aspectos cruciais e ainda pendentes de definição. Perguntas sem resposta:
– O que é “energia psíquica”?
– O que é psi?
– Por que psi é errática?
– Como sabemos que psi é inconsciente?
– Se psi não responde às leis naturais, a que leis responde?
– Se psi é errática e involuntária, por que há pessoas que parecem exercê-la à vontade em seus “consultórios profissionais”?
Fazendo um exame crítico e objetivo verificamos que não há provas nem sequer indícios a favor de psi, ou seja, da percepção extra-sensorial e da psicocinese. Para cúmulo, os parapsicólogos inventam novos termos para tratar de explicar o acaso. Exemplo: o que acontece quando uma pessoa acerta menos do que o esperado pelo acaso? Há percepção extra-sensorial negativa? Não. De maneira nenhuma. Preferem chamá-la “psi-missing” (perda de psi). Os mais audazes propõem que a pessoa nega inconscientemente o fenômeno e produz resultados inferiores ao esperado pelo acaso. Este é um procedimento típico da pseudociência.
Resumindo:
– Não há base experimental.
– Os resultados positivos são irrepetíveis.
– Tem sido detectada fraude em proporção alarmante.
– Tem se observado delineamentos experimentais defeituosos.
– Tem se descoberto análises estatísticas errôneas.
– Há uma incômoda maioria de resultados negativos (sem publicar).
– Há mais de 100 anos de pesquisas.
– As definições são vagas.
– Não existem hipóteses nem teorias explicativas.

Será preciso adicionar algo mais para percebermos que a parapsicologia é uma pseudociência?

A Batalha das Termópilas - Jacques-Louis David

terça-feira, novembro 07, 2006

Filme: Camisa de Força

Após recuperar-se de um tiro na cabeça, Jack Starks (Adrien Brody), um veterano da Guerra do Golfo, retorna à cidade natal sofrendo de amnésia. Quando é acusado de ter assassinado um policial, é recolhido num hospital psiquiátrico, onde um médico, Dr. Becker (Kris Kristofferson), o submete a um controverso tratamento, no qual é injetado no paciente drogas experimentais. Starcks é imobilizado numa camisa de força e trancafiado, por períodos longos, em uma gaveta para cadáveres, no sótão de um necrotério. A mente de Starks, drogada e desorientada, o transporta ao futuro, onde ele conhece Jackie (Keira Knightley), e descobre que está fadado a morrer em quatro dias. Juntos, eles buscam uma maneira de livrá-lo de seu trágico destino.


(clique aqui e assista ao trailer)



Os peixinhos de Felipe - Silvia Curiati

Felipe era um menino do bem, muito gente-boa. Ganhou um aquário quando completou 9 anos de idade. Enorme, daqueles que enchem os olhos, cheios de peixinhos coloridos de nomes estranhamente científicos.
Se apaixonou tanto pelo presente que todos os dias, durante aquele ano, passava as tardes numa loja de peixes estudando nadadeiras e movimentos, nomes e formas.

O dono do lugar, vendo isso, lhe ofereceu um emprego. Seria mais proveitoso do que tê-lo ali, à toa, zanzando pelos aquários como uma alma penada. E já que era um menino tão simpático, gente-boa, não haveria mal nenhum.

Felipe, então, trabalhava meio período. Ganhava em espécie. Um peixinho por mês.

Começou a achar que saía em desvantagem, já que um único peixinho não passava do preço de um saquinho de balas Chita. Ponderando a reclamação do funcionário-mirim, o patrão olhou Felipe nos olhos e, entregando-lhe um saco com um peixe grande quase imóvel, disse que pela sua dedicação, aquele mês ganharia um peixe raro grávido. Assim mesmo, peixe raro grávido. Era único na loja.

Não pareceu uma boa negociação ao menino, que entendeu ter de esperar mais um tempo para enxergar o tamanho real de seu salário.
Dias depois foi surpreendido com remuneração equivalente a 8 meses de trabalho. Com sua precoce visão para os negócios, pediu demissão e armou uma barraquinha em frente à sua casa, onde vendeu todos os 8 filhotes a um preço um pouco superior ao da concorrência, já que eram de espécie rara e não havia outros iguais na vizinhança. Claro, todos compravam de Felipe, não só por sua lábia de vendedor mas por ele ser um cara legal mesmo.

Com o dinheiro, comprou outros peixes grávidos com pinta de raros e montou um pequeno negócio, que lhe rendeu um lucro interessante em poucos meses.

Anos depois, fundou o primeiro Aquário de sua cidade, e para que a fórmula de sucesso fosse mantida, começou a provocar cruzamento de peixes com as mais diversas espécies animais, assim teria peixes raros e grávidos garantindo a longevidade do negócio. Foi preso acusado de práticas ilícitas de mutação gênica e terminou seus dias numa cadeia, perto do porto, cheirando a peixe, apesar de continuar sendo do bem e muito, muito gente-boa.

"Seamos realistas y hagamos lo imposible"


Che

segunda-feira, novembro 06, 2006

A Náusea - Jean-Paul Sartre,

"Por exemplo, essa espécie de ruminação dolorosa: existo - sou eu que a alimento. Eu. O corpo vive sozinho, uma vez que começou a viver. Mas o pensamento, sou eu que o continuo, que o desenvolvo. Existo. Penso que existo. Oh! Que serpentina comprida esse sentimento de existir - e eu a desenrolo muito lentamente... Se pudesse me impedir de pensar! Tenho, consigo: parece-me que minha cabeça se enche de fumaça, e eis que tudo recomeça: ‘Fumaça... não pensar... Não quero pensar... Penso que não quero pensar... Não devo pensar que não quero pensar. Porque isso também é um pensamento’. Será que não termina nunca?
Meu pensamento sou eu: eis por que posso parar. Existo porque penso... e não posso me impedir de pensar. Nesse exato momento - é terrível - se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o ódio, a repugnância de existir são outras tantas maneiras de me fazer existir, de me embrenhar na existência. Os pensamentos nascem por trás de mim como uma vertigem, sinto-os nascer atrás de minha cabeça... Se cedo, virão para frente, aqui entre meus olhos - e sempre cedo, o pensamento cresce, cresce e fica imenso, me enchendo por inteiro e renovando minha existência."


Exposição: !Mirabolante Miró





Vista por mais de 190 mil pesoas em Porto Alegre, onde fica o centro cultural do Santander Banespa, a exposição “!Mirabolante Miró”, em cartaz em Fortaleza, no Espaço Cultural Unifor, é uma boa dica para quem aprecia artes plásticas. Promovida pela Fundação Edson Queiroz / Universidade de Fortaleza, a mostra reúne 200 obras do artista catalão Joan Miró, um dos principais artistas do século XX, até 10 de dezembro. De terça a domingo, das 10h às 20h. Grátis

Os Sete Enforcados - Leônidas Andreiev

"'Isso é a morte? Que morte?' - pensa ela docemente. Se de todos os países viessem para a sua cela os sábios, os filósofos, os carrascos, se pussesem diante dela os livros, escapelos, machados e forcas, e começassem a gritar que a morte não existe, que o homem morre e não existe imortalidade, todos eles se espantariam. Como não existe imortalidade, quando ela já era imortal? De que outra imortalidade, de que outra morte se poderia falar, quando ela já está morta e igualmente imortal, viva dentro da morte, como se fosse viva dentro da vida? Se pussesem dentro de sua cela, enchendo-a com sua podridão, um ataúde com o seu próprio cadáver putrefato, e dissessem: 'Olha! És tu!', ela olharia, respondendo: 'Não! Não sou eu.'"

quarta-feira, novembro 01, 2006

Reflexões de um motorista - Silvia Curiati

Eu caminhava a passos firmes em direção ao estacionamento. Já tinha andando uma quadra e meia, ainda faltava a segunda metade, cruzar uma avenida de duas mãos e seguir por mais um quarteirão.

Não era tarde, umas oito, oito e meia da noite. Claro, esta informação depende de um referencial. Levando-se em conta que eu deveria ter deixado o hotel às cinco, no máximo com vinte minutos de atraso, era bastante tarde, sim.

Meus olhos ainda estavam embaçados, um pouco pelo astigmatismo incurável e avesso aos óculos de grau, e muito pelas emoções que insistiam em brotar, descontroladas, no estado líquido.

Assim mesmo, sei bem o que vi: ele vinha de costas. Caminhava em marcha-ré, na minha direção. Veloz, decidido. Só não juro que havia um par de olhos vermelhos em sua nuca porque posso estar cometendo um grande engano - o semáforo da avenida obrigava os carros a parar, e de novo, as emoções...

O fato é que ele veio. E as luzinhas vermelhas (existentes ou não) me confirmavam que vinha de costas. Esbarrou em mim intencionalmente e com força, dizendo, bastante incomodado com o fato de eu estar no meio do seu caminho, que eu deveria pensar em continuar no sentido oposto, já que a vida segue em frente, nem de lado, nem de costas.