sexta-feira, junho 30, 2006

quarta-feira, junho 28, 2006

Genealogia do Fanatismo - Emile Michel Cioran

Em si mesma toda idéia é neutra ou deveria sê-lo, mas o homem a anima, projeta nela suas paixões e suas demências; impura, transformada em crença, se insere no tempo, adota a forma de acontecimento: o passo da lógica para a epilepsia está consumado... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.
Idólatras por instinto, tornamos incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não é mais do que um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos em honra de pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião, o homem permanece sujeito a ela; consumindo-se em forjar simulacros de deuses, os adota depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: ele que ama indevidamente a um deus obriga os outros a amá-lo, planejando exterminá-los se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: converte-se num potencial assassino; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Nunca se mata tanto quanto se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são semelhantes aos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se sobressaem nas façanhas sanguinárias: Santa Tereza não podia deixar de ser contemporânea dos autos de fé e Lutero da matança dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos dos gemidos de êxtase... Patíbulos, calabouços e masmorras nunca prosperam tanto quanto à sombra de uma fé, dessa necessidade de crer que tem infestado os espíritos para sempre. O diabo empalidece junto a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: não foram senão sonhadores degenerados que se divertiam com as matanças. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia sobre o plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.
Enquanto nos recusarmos a admitir o caráter intercambiável das idéias, o sangue corre... Debaixo das resoluções firmes se ergue um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito da dúvida, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inépcia para o sossego, na megalomania prometeica de uma espécie que reinventa o ideal, que arrebenta debaixo de suas convicções e a qual, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça – vícios mais nobres do que todas as virtudes –, se embrenhou num caminho de perdição, na História, nessa mescla indecente de banalidade e apocalipse... Ela está plena de certezas: suprime-as e suprimireis sobretudo as suas conseqüências: reconstituireis o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo – tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror –, lepra lírica que contamina as almas, às submete, as tritura e as exalta... Só escapam os céticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque – verdadeiros benfeitores da humanidade – destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto a um Pirro do que junto a um São Paulo, porque um saber de anedotas é mais doce do que uma santidade desenfreada. Em um espírito ardente encontramos a ave de rapina disfarçada; não poderíamos nos defender com êxito das garras de um profeta... Quando eleva a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afastai-vos dele: sátiro de vossa solidão, não os perdoa o viver sem as suas verdades e seus arrebatamentos; quer fazê-los compartilhar de sua histeria, do seu bem, impô-lo a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não buscasse comunicá-la a outros é um fenômeno estranho ao mundo, donde a obsessão pela salvação torna a vida irrespirável. Olhem em torno de vós: Por toda parte vermes que predicam; cada instituição traz uma missão; os povoamentos têm seu absoluto como templos; a administração com os seus regulamentos: metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por remediar a vida de todos: aspiram a isto até os mendigos, inclusive os incuráveis; as calçadas do mundo e os hospitais estão cheios de reformadores. A ânsia de chegar a ser fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição livremente escolhida. A sociedade é um inferno de salvadores. O que buscava Diógenes com sua lanterna era um indiferente...
Basta que eu escute alguém falar sinceramente de ideal, futuro, de filosofia, escutá-lo dizer “nós” com uma inflexão de segurança, convocar os “outros” e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano falido, quase um verdugo, tão odioso como os tiranos e verdugos de grande classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, tanto mais temível quando os “puros” são os seus agentes. Suspeita-se dos ladinos, dos velhacos, dos trapaceiros, entretanto, não saberíamos imputar-lhes nenhuma das grandes convulsões da história; não acreditando em nada, não espionam vossos corações, nem vossos pensamentos mais íntimos; os abandonam a vossa acomodação, a vosso desespero ou a vossa inutilidade; a humanidade lhes deve os poucos momentos de prosperidade que tem conhecido; são eles os que salvam os povos que os fanáticos torturam e os “idealistas” arruínam. Sem doutrinas, não têm mais do que caprichos e interesses, vícios acomodatícios, mil vezes mais suportáveis do que o despotismo dos princípios; porque todos os males da vida vêm de uma “concepção de vida”. Um homem político educado deveria aprofundar-se nos sofistas antigos e tomar lições de canto; e de corrupção...
O fanático é incorruptível: assim como mata por uma idéia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não há seres mais perigosos que os que sofreram por uma crença: os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires aos quais não se cortou a cabeça. Longe de diminuir o apetite pelo poder, o sofrimento o exaspera: por isso o espírito se sente mais a gosto na companhia de um fanfarrão do que de um mártir; e nada lhe repugna tanto como esse espetáculo no qual se morre por uma idéia... Farto do sublime e de carnificinas sonha com um tédio provinciano a escala universal, com uma História cujo estancamento seria tal que a dúvida se apresentaria como um acontecimento e a esperança como uma calamidade...

Texturas e Cores

segunda-feira, junho 26, 2006

O Vazio da Existência - Arthur Schopenhauer

Esse vazio encontra sua expressão em toda forma de existência, na infinitude do Tempo e Espaço em oposição à finitude do indivíduo em ambos; no fugaz presente como a única forma de existência real; na dependência e relatividade de todas coisas; em constantemente se Tornar sem Ser; em continuamente desejar sem ser satisfeito; na longa batalha que constitui a história da vida, onde todo esforço é contrariado por dificuldades, até que a vitória seja conquistada. O Tempo e a transitoriedade de todas as coisas são apenas a forma sob a qual o desejo de viver – que, como coisa-em-si, é imperecível – revelou ao Tempo a futilidade de seus esforços; é o agente pelo qual, a todo o momento, todas as coisas em nossas mãos tornam-se nada e, portanto, perdem todo seu verdadeiro valor.
O que foi não mais existe; existe exatamente tão pouco quanto aquilo que nunca foi. Mas tudo que existe, no próximo momento, já foi. Conseqüentemente, algo pertencente ao presente, independentemente de quão fútil possa ser, é superior a algo importante pertencente ao passado; isso porque o primeiro é uma realidade, e está para o último como algo está para nada.
Um homem, para seu assombro, repentinamente torna-se consciente de sua existência após um estado de não-existência de muitos milhares de anos; vive por um breve período e então, novamente, retorna a um estado de não-existência por um tempo igualmente longo. Isso não pode ser verdade, diz ao seu coração; e mesmo as mentes rudes, após ponderarem sobre o assunto, devem sentir algum tipo de pressentimento de que o Tempo é algo ideal em sua natureza. Essa idealidade do tempo, juntamente com a do espaço, é a chave para qualquer sistema metafísico verdadeiro, pois proporciona uma ordem de coisas distinta da que pode ser encontrada no domínio da natureza. Por essa razão Kant é tão grandioso.
De cada evento em nossa vida, é apenas por um momento que podemos dizer que este é; após isso devemos dizer para sempre que este foi. Cada noite nos empobrece, dia a dia. Provavelmente nos deixaria irritados ver este curto espaço de tempo esvaecendo, se não fôssemos secretamente conscientes, nas maiores profundezas de nosso ser, de que compartilhamos do inexaurível manancial da eternidade, e de que nele podemos sempre ter a vida renovada.
Reflexões com a natureza das acima podem, de fato, nos levar a estabelecer a crença de que gozar o presente e fazer disso o propósito da vida é a maior sabedoria; visto que somente o presente é real, todo o mais é representação do pensamento. Mas tal propósito poderia também ser denominado a maior tolice, pois aquilo que, no próximo instante, não mais existe e desaparece completamente como um sonho, jamais poderá merecer um esforço sério.
Toda a nossa existência é fundamentada tão-somente no presente – no fugaz presente. Deste modo, tem de tomar a forma de um constante movimento, sem que jamais haja qualquer possibilidade de se encontrar o descanso pelo qual estamos sempre lutando. É o mesmo que um homem correndo ladeira abaixo: cairia se tentasse parar, e apenas continuando a correr consegue manter-se sobre suas pernas; como um pólo equilibrado na ponta do dedo, ou como um planeta, o qual cairia no sol se cessasse com seu percurso. Nossa existência é marcada pelo desassossego.
Num mundo como este, onde nada é estável e nada perdura, mas é arremessado em um incansável turbilhão de mudanças, onde tudo se apressa, voa, e mantém-se em equilíbrio avançando e movendo-se continuamente, como um acrobata em uma corda – em tal mundo, a felicidade é inconcebível. Como poderia haver onde, como Platão diz, tornar-se continuamente e nunca ser é a única forma de existência? Primeiramente, nenhum homem é feliz; luta sua vida toda em busca de uma felicidade imaginária, a qual raramente alcança, e, quando alcança, é apenas para sua desilusão; e, via de regra, no fim, é um náufrago, chegando ao porto com mastros e velas faltando. Então dá no mesmo se foi feliz ou infeliz, pois sua vida nunca foi mais que um presente sempre passageiro, que agora já acabou.
Ao mesmo tempo, é algo surpreendente que, tanto no mundo de seres humanos quanto no dos animais em geral, essa variada e incansável moção é produzida e mantida por meio de dois simples impulsos – fome e o instinto sexual, ajudados talvez por um pouco de tédio, mas nada mais –, e estes, no teatro da vida, têm o poder de constituir o primum mobile de uma maquinaria tão complexa, colocando em movimento cenas tão estranhas e variadas!
Analisando os pormenores, constatamos que a matéria inorgânica apresenta um constante conflito entre forças químicas, as quais por vezes promovem a dissolução; por outro lado, a existência orgânica somente é possível através de uma contínua substituição de matéria, e não pode subsistir se não dispuser de uma eterna ajuda exterior. Portanto a vida orgânica é como o balançar de um pólo na mão; deve ser mantida em constante movimento e ter constante suprimento de matéria – da qual necessita continuamente e eternamente. Apesar disso, é apenas através da vida orgânica que a consciência é possível.
Este é o reino da existência finita, e seu oposto seria uma existência infinita, a qual não está exposta a ataques externos nem precisa de ajuda exterior; [grego: aei hosautos on] o reino da paz eterna; [grego: oute gignomenon, oute apollymenon], sem mudanças, sem tempo, sem diversidade; o conhecimento negativo do que constitui a nota fundamental da filosofia platônica. A renúncia da vontade de viver revela o caminho a um tipo de estado como esse.
As cenas de nossa vida são como imagens em um mosaico tosco; vistas de perto, não produzem efeitos – devem ser vistas à distância para ser possível discernir sua beleza. Assim, conquistar algo que desejamos significa descobrir quão vazio e inútil este algo é; estamos sempre vivendo na expectativa de coisas melhores, enquanto, ao mesmo tempo, comumente nos arrependemos e desejamos aquilo que pertence ao passado. Aceitamos o presente como algo que é apenas temporário e o consideramos como um meio para atingir nosso objetivo. Deste modo, se olharem para trás no fim de suas vidas, a maior parte das pessoas perceberá que viveram-nas ad interim [provisoriamente]: ficarão surpresas ao descobrir que aquilo que deixaram passar despercebido e sem proveito era precisamente sua vida – isto é, a vida na expectativa da qual passaram todo o seu tempo. Então se pode dizer que o homem, via de regra, é enganado pela esperança até dançar nos braços da morte!
Novamente, há a insaciabilidade de cada vontade individual; toda vez que é satisfeita um novo desejo é engendrado, e não há fim para seus desejos eternamente insaciáveis.
Isso acontece porque a Vontade, tomada em si mesma, é a soberana de todos os mundos: como tudo lhe pertence, não se satisfaz com uma parcela de qualquer coisa, mas apenas como o todo, o qual, entretanto, é infinito. Devemos elevar nossa compaixão quando consideramos quão minúscula a Vontade – essa soberana do mundo – torna-se quando toma a forma de um indivíduo; normalmente apenas o que basta para manter o corpo. Por isso o homem é tão miserável.
Na presente época, que é intelectualmente impotente e notável por sua veneração daquilo que é ruim em todas formas – um estado de coisas que é bastante condizente com a palavra cunhada “Jetztzeit” (tempo presente), tão pretensiosa quanto é cacofônica – os panteístas atrevem-se a dizer que a vida é, como dizem, “um fim-em-si”. Se nossa existência neste mundo fosse um fim-em-si, seria a mais absurda finalidade jamais determinada; mesmo nós próprios ou qualquer outro poderia tê-la imaginado.
A vida apresenta-se principalmente como uma tarefa, isto é, de subsistir de gagner sa vie [para ganhar a vida]. Se for cumprida, a vida torna-se um fardo, e então vem a segunda tarefa de fazer algo com aquilo que foi conquistado – a fim de espantar o tédio, que, como uma ave de rapina, paira sobre nós, pronto para atacar sempre que vê a vida livre da necessidade.
A primeira tarefa é conquistar algo; a segunda é banir o sentimento de que algo foi conquistado, do contrário torna-se um fardo.
Está suficientemente claro que a vida humana deve ser algum tipo de erro, com base no fato de que o homem é uma combinação de necessidades difíceis de satisfazer; ademais, se for satisfeito, tudo que obtém um estado de ausência de dor, no qual nada resta senão seu abandono ao tédio. Essa é uma prova precisa de que a existência em si mesma não tem valor, visto que o tédio é meramente o sentimento do vazio da existência. Se, por exemplo, a vida – o desejo pelo qual se constitui nosso ser – possuísse qualquer valor real e positivo, o tédio não existiria: a própria existência em si nos satisfaria, e não desejaríamos nada. Mas nossa existência não é uma coisa agradável a não ser que estejamos em busca de algo; então a distância e os obstáculos a serem superados representam nossa meta como algo que nos satisfará – uma ilusão que desvanece assim que o objetivo é atingido; ou quando estamos engajados em algo que é de natureza puramente intelectual – quando nos distanciamos do mundo a fim de podermos observá-lo pelo lado de fora, como espectadores de um teatro. Mesmo o prazer sensual em si não significa nada além de um esforço contínuo, o qual cessa tão logo quanto seu objetivo é alcançado. Sempre que não estivermos ocupados em algum desses modos, mas jogados na existência em si, nos confrontamos com seu vazio e futilidade; e isso é o que denominamos tédio. O inato e inextirpável anseio pelo que é incomum demonstra quão gratos somos pela interrupção do tedioso curso natural das coisas. Mesmo a pompa e o esplendor dos ricos em seus castelos imponentes, no fundo, não passam de uma tentativa fútil de escapar da essência existencial, a miséria.
O fato de que a mais perfeita manifestação da vontade de viver – o organismo humano, com a sua sutil e complexa maquinaria – deve decair e finalmente render todos os seus esforços à extinção – esse é o simples meio pelo qual a Natureza, invariavelmente verdadeira e sincera, declara todo o esforço da vontade, em sua própria essência, como estéril e inútil. Se tivesse algum valor em si, algo incondicionado e absoluto, seu fim não seria a inexistência. Esta é a nota dominante da bela música de Goethe:

No alto da velha torre
Fica o herói de mente nobre.

[Hoch auf dem alten Thurme steht
Des Helden edler Geist.]

O homem é apenas um fenômeno, não a coisa-em-si – digo: o homem não é [grego: ontos on]; isso se comprova pelo fato de que a morte é uma necessidade.

E quão diferente o começo de nossas vidas é do seu fim! O primeiro é feito de ilusões de esperança e divertimento sensual, enquanto o último é perseguido pela decadência corporal e odor de morte.
O caminho que divide ambas, no que concerne nosso bem-estar e deleite da vida, é a bancarrota; os sonhos da infância, os prazeres da juventude, os problemas da meia-idade, a enfermidade e miséria freqüente da velhice, as agonias de nossa última enfermidade e, finalmente, a luta com a morte – tudo isso não faz parecer que a existência é um erro cujas conseqüências estão se tornando gradualmente mais e mais óbvias?
Seria sábio considerar a vida como um desengaño, uma ilusão; que tudo está organizado nesse sentido: isso está suficientemente claro.
É apenas no microscópio que nossa vida parece grandiosa. É um ponto indivisível, captado e ampliado pelas poderosas lentes do Tempo e do Espaço.
Tempo é um elemento em nosso cérebro que, por meio da duração, cria uma semelhança de realidade na existência absolutamente vazia das coisas e de nós mesmos.
Quanta tolice há no homem que se arrepende e lamenta por não ter aproveitado oportunidades passadas, as quais poderiam ter-lhe assegurado esta ou aquela felicidade ou prazer! O que resta desses agora? Apenas o fantasma de uma lembrança! E é o mesmo com tudo aquilo que faz parte de nossa sorte. De modo que a forma do tempo, em si, e tudo quanto é baseado nisso, é um modo claro de provar a nós a vacuidade de todos deleites terrenos.
Nossa existência, assim como a de todos animais, não é duradoura, mas apenas temporária, meramente uma existentia fluxa, que pode ser comparada a um moinho no qual há constante mudança.
É verdade que a forma do corpo dura por um tempo, mas apenas sob a condição de que a matéria esteja sempre mudando, de que a velha matéria seja descartava e uma nova seja incorporada. É o principal empenho de todas as formas viventes assegurar um constante suprimento de matéria aproveitável. Ao mesmo tempo, estão conscientes de que sua existência é modelada de modo a durar apenas um período de tempo, como foi dito. Por essa razão tentam, quando estão abandonando a vida, deixá-la para outrem que tomará seu lugar. Essa tentativa toma a forma do instinto sexual em autoconsciência, e na consciência de outras coisas apresenta-se objetivamente – isto é, na forma do instinto genital. Esse instinto pode ser comparado ao enfileiramento de uma corrente de pérolas; um indivíduo sucedendo o outro tão rapidamente como as pérolas na corrente. Se nós, em imaginação, acelerarmos essa sucessão, veremos que a matéria está mudando constantemente em toda a fileira assim como está mudando em cada pérola, enquanto retém a mesma forma: percebemos então que temos apenas uma quasi-existência. Que são somente as Idéias que existem e criaturas-sombra daquilo que lhes corresponde – isso é a base dos ensinamentos de Platão.
A idéia de que não somos nada senão um fenômeno, em oposição à coisa-em-si, é confirmada, exemplificada e clarificada pelo fato de que a conditio sine qua non de nossa existência é um contínuo fluxo de descarto e aquisição de matéria que, como nutrição, é uma constante necessidade. De modo que nos assemelhamos a fenômenos como fumaça, fogo ou um jato de água, todos os quais desvanecem ou cessam diretamente se não houver suprimento de matéria. Pode ser dito, então, que a vontade de viver apresenta-se na forma de um fenômeno puro que termina em nada. Esse nada, entretanto, juntamente com o fenômeno, permanece dentro do limite da vontade de viver e são baseados nesse. Admito que isso é um pouco obscuro.
Se tentarmos obter uma perspectiva geral da humanidade num relance, constataremos que em todo lugar há uma constante e grandiosa luta pela vida e existência; que as forças mentais e físicas são exploradas ao limite; que há ameaças, perigos e aflições de todo gênero.
Considerando o preço pago por isto tudo – existência e a própria vida –, veremos que houve um intervalo quando a existência era livre de sofrimento, um intervalo que, entretanto, foi imediatamente sucedido pelo tédio, o qual, por sua vez, foi rapidamente sucedido por novos anseios.
O tédio ser imediatamente sucedido por novos anseios é um fato também verdadeiro à mais sábia ordem de animais, pois a vida não tem valor verdadeiro e genuíno em si mesma, mas é mantida em movimento por meio de meras necessidades e ilusões. Tão logo quanto não houver necessidades e ilusões tornamo-nos conscientes da absoluta futilidade e vacuidade da existência.
Se deixarmos de contemplar o curso mundo como um todo e, em particular, a efêmera e cômica existência de homens enquanto sucedem um ao outro rapidamente para observar a vida em seus pequenos detalhes: quão ridícula é a visão!
Impressiona-nos do mesmo modo como uma gota d’água, uma simples gota fervilhando de infusoria, é vista por um microscópio, ou um pedaço de queijo cheio de carunchos invisíveis a olho nu. Sua atividade e luta uns contra os outros em um espaço tão pequeno nos entretém grandemente. Acontece o mesmo no pequeno lapso da vida – uma grande e séria atividade produz um efeito irrisório.
Nenhum homem jamais se sentiu perfeitamente feliz no presente; se acontecesse, isso o envenenaria.

sábado, junho 24, 2006


"Mai si è troppo giovani o troppo vecchi per la conoscenza della felicità. A qualsiasi età è bello occuparsi del benessere dell'animo nostro.
Chi sostiene che non è ancora giunto il momento di dedicarsi alla conoscenza di essa, o che ormai è troppo tardi, è come se andasse dicendo che non è ancora il momento di essere felice, o che ormai è passata l'età. Ecco che da giovani come da vecchi è giusto che noi ci dedichiamo a conoscere la felicità. Per sentirci sempre giovani quando saremo avanti con gli anni in virtù del grato ricordo della felicità avuta in passato, e da giovani, irrobustiti in essa, per prepararci a non temere l'avvenire.
Cerchiamo di conoscere allora le cose che fanno la felicità, perché quando essa c'è tutto abbiamo, altrimenti tutto facciamo per possederla." -
Epicuro de Salmos

sexta-feira, junho 23, 2006

A Freia com Câncer no Ovário - Silvia Curiati

- Ele disse ovário.
- É, eu ouvi. Triste, esta doença. Nem sei o que dizer...
- Ovário. Há dezenas de lugares onde poderia dar. Por que no ovário?
- O que faz o ovário mais especial que o resto do seu corpo?
- Produz óvulos. Jamais fecundados. Nunca tiveram tal intenção. Desde meus 12 anos de idade eu sabia que me dedicaria a Ele. A retribuição não me parece muito justa.
- Não é momento de gastar energia nisso. É momento de reclusão, de paz interior.
- Poderia morrer hoje, sem nenhum problema. Mas com meus ovários limpos, se foi à pureza que os dediquei.
- Bem... dizem que quem guarda coisas ruins no corpo pode desenvolver um câncer... Se você...
- Você acha que é castigo? Por tudo o que temos?
- Er... castigo?
- Sim, você sabe. Não é certo o que fazemos.
- Por que não é certo? Por sermos freiras ou mulheres?
- Os dois. O primeiro por irmos contra um voto de castidade e o segundo porque não é o curso natural das coisas.
- Claro que é natural! Eu te amo! Amor é natural... Você quer dizer então que posso ser "castigada" também?
- Se for Sua vontade, sim.
- Nunca deixamos de louvá-lo e serví-lo para estarmos juntas. Não acho que Ele nos puniria por termos... nos dado bem.
- Eu "me dei bem" com outras irmãs antes de você. Deve ser por isso, então.
- O quê? Você nunca me disse nada?? Quem???
- Não importa.
- Como não?? Você se diverte com 10 e vem morrer justo comigo, pra eu passar o resto dos seus dias te cuidando?
- Não foram 10...
- Foda-se quantos foram...
- Meu Deus!
- Não fale assim... é pecado.
- Ah, pecado, pecado... pecado é eu ficar definhando aqui nesta cama enquanto todo mundo continua vivo, fazendo coisa pior por aí. Veja a Sônia...
- O que tem a Irmã Sônia?
- Ela... bem, "se dá bem" com homens. Homens da paróquia...
- Quem?
- Ninguém.
- Fala...
- Não.
- Confessa...
- O Alceu.
- O Padre Alceu?!? Mas o Alceu é gay!
- Gay???
- Sim.
- Meu Deus!
- Já disse que é pecado falar assim...
- Perdão...
- Esse mundo está perdido...
- É o fim dos tempos. E só eu sou punida com esta coisa... aqui dentro de mim...
- Podia ser pior...
- Mas como?!
- Você podia nem ter me conhecido.
- Ó, meu anjo...
- Papa-anjo...
- Não fala "Papa" em vão que é pecado...
- Foda-se.
- É isso aí...

“Só tem convicções aquele que não aprofundou nada.” Cioran

Astrologia não é Ciência - Kepler de Souza Oliveira Filho

A astrologia relaciona a posição dos astros no céu, tanto no nascimento quanto diariamente, com fatos na Terra, incluindo os humores e destinos das pessoas. Ela assume que há ação dos corpos celestes sobre os objetos animados e inanimados e que os ângulos aparentes entre os planetas no céu afetam a humanidade. Astrologia não deve ser confundida com Astronomia, a ciência que verdadeiramente estuda os astros e seu funcionamento, isto é, sua física.
Quando a astrologia começou, no vale dos rios Eufrates e Tigre, no atual Iraque, cerca de 3000 a.C., os mesopotâmicos e os babilônios acreditavam que os planetas, incluindo o Sol e a Lua, e seus movimentos, afetavam a vida dos reis e das nações. Os chineses tinham crenças similares por volta de 2000 a.C. Quando a cultura babilônica foi absorvida pelos gregos, por volta de 500 a.C., a astrologia gradualmente se espalhou pelo Ocidente. Por volta do segundo século antes de Cristo, os gregos democratizaram a astrologia, desenvolvendo a tradição de que os planetas influenciavam a vida de todas as pessoas. Eles acreditavam que a configuração planetária no momento do nascimento das pessoas afetava sua personalidade e seu futuro. Esta forma de astrologia, conhecida como astrologia natal, alcançou seu ápice com o grande astrônomo Claudius Ptolomeu (85-165 d.C.). Seu trabalho de astrologia, Tetrabiblos, permanece como a base da astrologia ainda hoje.
A chave da astrologia natal é o horóscopo, uma carta que mostra a posição dos planetas no céu no momento do nascimento (e não da concepção!), em relação às doze constelações do Zodíaco, definidas naquela época como cada uma ocupando 30 graus na eclíptica, e chamadas signos. As posições são tomadas em relação às casas, regiões de 30 graus do céu em relação ao horizonte.
Uma variante popular da astrologia é baseada no signo solar, que usa somente um elemento, o signo ocupado pelo Sol no momento do nascimento da pessoa. É esta que aparece nos jornais e revistas.
A necessidade de conhecimento da posição dos planetas levou ao desenvolvimento da astronomia.
A astrologia não é uma ciência. Assim como a astronomia, ela floresceu na Antigüidade, muito antes da formulação da teoria gravitacional e da teoria eletromagnética e do conhecimento de que todos os astros são compostos da mesma matéria existente aqui na Terra. Não existe matéria “celeste” como acreditava Aristóteles (384-322 a.C.). Mas, ao contrário da Astronomia, ela não incorpora as teorias científicas e assume que a Terra está no centro do Universo, rodeada pelo Zodíaco, e a definição dos signos ignora a precessão do eixo de rotação da Terra.
Devido à precessão dos equinócios, o Sol atualmente cruza Áries de 18 de abril a 12 de maio, Touro de 13 de maio a 20 de junho, Gêmeos de 21 de junho a 19 de julho, Câncer de 20 de julho a 9 de agosto, Leão de 10 de agosto a 15 de setembro, Virgem de 16 de setembro a 30 de outubro, Libra de 31 de outubro a 22 de novembro, Escorpião de 23 de novembro a 28 de novembro, Ofiúco de 29 de novembro a 16 de dezembro, Sagitário de 17 de dezembro a 18 de janeiro, Capricórnio de 19 de janeiro a 15 de fevereiro, Aquário de 16 de fevereiro a 11 de março e Peixes de 12 de março a 17 de abril.
Tanto a teoria gravitacional de Newton e Einstein quanto a teoria eletromagnética de Maxwell comprovam que o efeito dos astros nas pessoas é completamente desprezível, isto é, muito menor do que o efeito dos outros corpos na própria Terra. Naturalmente não estamos falando da luz do Sol, principal fonte de energia na Terra, nem dos efeitos de maré da Lua, e em menor parte do Sol, sobre a Terra. Também não estamos falando do efeito real da colisão de um asteróide ou meteorito com a Terra, que muitas vezes tem conseqüências catastróficas. O obstetra que realiza o parto de uma criança exerce uma atração gravitacional sobre ela seis vezes maior do que o planeta Marte, pois embora a massa de Marte seja muito maior do que a do obstetra, o planeta está muito mais distante. O efeito de maré do obstetra sobre a criança é ainda dois trilhões de vezes maior do que o de Marte.
Por falar em distâncias, a astrologia, ao calcular os horóscopos, assume que o efeito dos planetas, como Marte, é o mesmo quando Marte está do mesmo lado do Sol que a Terra e quando ele está do outro lado do Sol, cinco vezes mais distante! Todas as forças conhecidas (gravitacional, elétrica e magnética, força fraca e força forte) dependem da distância. Se o efeito não depende da distância, então qual é o efeito das estrelas, galáxias e quasares?
Os sinais de rádio emitidos pelo Sol e por Júpiter, e em menor quantidade por todos os outros planetas, também sinais eletromagnéticos, são muito menos intensos que os sinais emitidos por uma pequena emissora de rádio de 1 kilowatt a 1000 km de distância. Todos os efeitos eletromagnéticos e gravitacionais caem com o quadrado da distância.
A característica fundamental da ciência é basear-se na observação da natureza e na experimentação. Os efeitos das posições dos planetas e da Lua em qualquer pessoa na Terra nunca foram demonstrados em qualquer estudo sistemático. Nas últimas décadas vários cientistas testaram as previsões da astrologia e comprovaram que não há resultados:

1 – O psicólogo Bernard Silverman, da Michigan State University, estudou o casamento de 2978 casais e o divórcio de 478 casais, comparando com as previsões de compatibilidade ou incompatibilidade dos horóscopos e não encontrou qualquer correlação. Pessoas “incompatíveis” casam-se e divorciam-se com a mesma freqüência que as “compatíveis”. O psicólogo suíço Carl Jung (1875-1961), em seu livro “A Interpretação da Natureza e da Psique”, chegou a mesma conclusão.

2 – O físico John McGervey, da Case Western University, estudou as biografias e datas de nascimento de 6000 políticos e 17000 cientistas e não encontrou qualquer correlação entre a data de nascimento e a profissão, prevista pela astrologia.

3 – Um teste duplo-cego da astrologia foi proposto e executado pelo físico Shawn Carlson, do Lawrence Berkeley Laboratory, Universidade da Califórnia. Grupos de voluntários forneceram informações para que uma organização astrológica bem estabelecida produzisse um horóscopo completo da pessoa, que também preenchia um questionário de personalidade completo, pré-estabelecido de comum acordo com os astrólogos.
A organização astrológica que calculava o horóscopo completo da pessoa, juntamente com 28 astrólogos profissionais que tinham aprovado o procedimento antecipadamente, selecionavam entre três questionários de personalidade aquele que correspondia a um horóscopo calculado. Como havia 3 questionários e um horóscopo, a chance de acerto aleatório é de 1/3 = 33%.
Os astrólogos tinham previsto antecipadamente que a taxa de acerto deveria ser maior do que 50%, mas, em 116 testes, a taxa de acerto foi de 34%, ou seja, a esperada para escolha ao acaso! Os resultados foram publicados no artigo A Double Blind Test of Astrology, S. Carlson, 1985, Nature, Vol. 318, p. 419.

4 – Os astrônomos Roger Culver e Philip Ianna, que publicaram o livro Astrology: True or False, (1988, Prometheus Books), registraram as previsões publicadas de astrólogos bem conhecidos e organizações astrológicas por cinco anos. Das mais de 3000 previsões específicas, envolvendo muitos políticos, atores e outras pessoas famosas, somente 10% se concretizaram. Esta taxa é menor do que a de opiniões informadas.

5 – Uma pesquisa coordenada pelo Prof. Salim Simão do Departamento de Produção Vegetal da Universidade de São Paulo, durante sete anos, comprovou que a fase da Lua não tem efeito no crescimento das plantas. (Veja, edição 1638, 1 mar 2000, p. 127).

6 – O médico dermatologista Valcinir Bedin, presidente da Sociedade Brasileira para Estudos do Cabelo conclui: “Independentemente da fase lunar, a média de crescimento mensal do cabelo é de um centímetro.” (Veja, edição 1638, 1 mar 2000, p. 127).

Portanto, embora mais de 50% da população acreditem em astrologia, trata-se somente de uma crença, sem qualquer embasamento científico.

segunda-feira, junho 12, 2006

The Shins - New Slang

gold teeth and a curse for this town were all in my mouth.
only, i don't know how they got out, dear.
turn me back into the pet that i was when we met.
i was happier then with no mind-set.

and if you'd 'a took to me like
a gull takes to the wind.
well, i'd 'a jumped from my tree
and i'd a danced like the king of the eyesores
and the rest of our lives would 'a fared well.

new slang when you notice the stripes, the dirt in your fries.
hope it's right when you die, old and bony.
dawn breaks like a bull through the hall,
never should have called
but my head's to the wall and i'm lonely.

and if you'd 'a took to me like
a gull takes to the wind.
well, i'd 'a jumped from my tree
and i'd a danced like the king of the eyesores
and the rest of our lives would 'a fared well.

god speed all the bakers at dawn may they all cut their thumbs,

and bleed into their buns 'till they melt away.

i'm looking in on the good life i might be doomed never to find.

without a trust or flaming fields am i too dumb to refine?
and if you'd 'a took to me like
well i'd a danced like the queen of the eyesores
and the rest of our lives would 'a fared well.

(clique no título e conheça a tradução dessa música)

sábado, junho 10, 2006

O Velho e o Moço - Interpretação pessoal

Como é comum nas originais composições dos hermanos compositores, em O Velho e o Moço, faixa oito do CD Ventura, Amarante faz uma espécie de diálogo. Na verdade, primeiro fala um, o velho, e depois o moço. O mais interessante é a maneira simétrica como foi construída. Cada fala do moço casa com uma fala do velho.

Primeiro, fala O Velho:

1 Deixo tudo assim.
Não me importo em ver a idade em mim,
ouço o que convém. Eu gosto é do gasto.

2 Sei do incômodo e ela tem razão
quando vem dizer que eu preciso sim
de todo o cuidado.


O incômodo dito é aquela coisa de ser velho e ser um transtorno pra família... "Ela", que tem a razão, poderia ser por exemplo a filha zelosa.

Aí vem a indagação: - eu poderia ter pensado melhor nas minhas escolhas?

3 E se eu fosse o primeiro a voltar
pra mudar o que eu fiz,
quem então agora eu seria?


E a "constatação":


4 Tanto faz que o que não foi não é.
Eu sei que ainda vou voltar... mas eu quem será?


Agora, fala O Moço:


1 Deixo tudo assim, não me acanho em ver
vaidade em mim. Eu digo o que condiz.
Eu gosto é do estrago.

2 Sei do escândalo e eles têm razão
quando vêm dizer que eu não sei medir
nem tempo e nem medo.



O jovem, por sua vez, causa escândalo, e é mais desmedido, mais inconsequente.

A indagação, portanto, é outra: - adianta escolher muito se eu não sei no que vai dar?


3 E se eu for o primeiro a prever
e poder desistir do que for dar errado?


Ainda o moço:

Ah, ora, se não sou eu quem mais vai decidir o que é bom pra mim?
Dispenso a previsão!


E o velho novamente:


Ah, se o que eu sou é também
o que eu escolhi ser, aceito a condição.


Essa pelo menos é a interpretação mais aceitável que vi da música. Há quem diga que não são duas pessoas, mas a mesma, antes e depois (ou melhor, depois e antes). A idéia, de qualquer forma, é a mesma.

E a música se encerra assim:


Vou levando assim
que o acaso é amigo do meu coração
quando fala comigo, quando eu sei ouvir...


Ou seja, esteja atento ao que diz seu coração, e siga-o. É a melhor escolha que tem a fazer, já que nunca saberemos no que vai dar antes, e não poderemos mudar depois.

sexta-feira, junho 09, 2006

Um dia, em Nova York... - Luis Fernado Veríssimo

Um dia, em Nova York, entramos no café em frente ao Lincoln Center para tomar um expresso, hoje, felizmente, mais fácil de se encontrar nos Estados Unidos do que há alguns anos, quando só o que respondia pelo nome de “café” era um líquido escuro de procedência duvidosa, obviamente um impostor, e a Lúcia se admirou: o garçom era americano! Pelo menos era alto, loiro e sardento. O velho terror de quem viajava com pouco inglês para os Estados Unidos, o de não conseguir se fazer entender por nenhum garçom e morrer de fome, hoje não se justifica mais. A não ser que o viajante não maneje nem um simulacro de espanhol. A dificuldade agora é para os americanos entenderem os garçons. Pode-se imaginar, com uma certa ponta de satisfação, turistas do meio-oeste americano sendo obrigados a recorrer a dicionários portáteis ou à linguagem internacional do dedo apontado por pedir seus “ham and eggs” da manhã. Os “hispânicos” são a maioria nos bares e restaurantes de Nova York, mas a mistura é grande. Ficávamos adivinhando a origem das pessoas que víamos servindo às mesas, cuidando da caixa ou trabalhando na cozinha dos lugares que freqüentávamos. Muitos gregos. Pretos com sotaque espanhol quase certamente são dominicanos. Outros têm a pronúncia inconfundível da Jamaica. Muitos sotaques são indecifráveis. O refeitório de Babel depois da danação devia se parecer com um “coffee-shop” de Nova York. Com a diferença que, como todos já adquiriram a típica combinação nova-iorquina de simpatia barulhenta e irritação mais barulhenta ainda, todos se entendem bem, ou se desentendem numa língua aproximada.

Mas ali estava um americano legítimo nos servindo o expresso. Quase pedimos seu autógrafo. Mas dali a pouco entrou um conterrâneo dele e, ou muito me engano ou o chamou de “Rosé”. Era um hispânico. Naquela noite, a moça que nos trouxe as bebidas no “Blue Note”, onde fomos ouvir jazz, era alta, loira e mascava chiclé, mas eu não acreditava mais. Devia ser brasileira.

Metade dos anúncios no “subway” de Nova York são em espanhol. No Times Square, uma fila enorme se prepara para entrar num cinema. São pessoas de todas as idades e de várias cores, vestidos como americanos, aparentemente à vontade naquele concentrado do melhor e do pior da civilização urbana americana que é o Times Square - mas o filme que esperam para ver é do Cantinflas. Nos cartazes do cinema, anunciando aquela e as próximas atrações - comédias, musicais e dramalhões de várias procedências latino-americanas - não há uma só palavra em inglês. No Greenwich Village vamos assistir a um espetáculo chamado “A Salsa encontra o Jazz”. A freqüência é um microcosmo da comunidade latina da cidade. Versões latinas do que os americanos chamam de “yuppies”, “young urban professionals” ou jovens profissionais urbanos. Gente mais velha, obviamente bem de vida, fazendo seu programinha semanal. Tipos que variam do bizarro ao sórdido e que você esperaria encontrar em qualquer cabaré latino-americano. E alguns americanos infiltrados. É difícil dizer, pela cara, de onde vêm os latinos. Os americanos simplificaram tudo e inventaram uma nova raça: “hispânicos”. Lá se fala em brancos, pretos, orientais e “hispânicos”. Claro que os protótipos são os descendentes de índio mexicano e os porto-riquenhos de tez morena, mas a classificação engloba qualquer pessoa nascida ao sul do Rio Grande. A Vera Fischer, de acordo com a generalização americana, não é branca, é hispânica.

Não param de entrar hispânicos, legal ou ilegalmente, nos Estados Unidos. Imigrantes do sudeste asiático, em grande parte refugiados, se espalham em comunidades por todo o país. A economia em expansão os absorve e a sociedade de um jeito ou de outro, também. Há coisas admiráveis. Uma das questões que se discute nos Estados Unidos atualmente é se as escolas devem ser obrigadas a dar instrução a filhos de imigrantes recentes na língua deles - uma questão, talvez, inconcebível em qualquer outro lugar do mundo. Mas há o lado sombrio. Boa parte dos novos imigrantes trabalha clandestinamente, ganhando menos do que o mínimo legal. Uma nova recessão com desemprego alto alimentaria o ressentimento dos nativos. O sentimento da nação é francamente reacionário, primeiro nós e os outros que se danem. Clinton, apesar de ser um democrata meio republicano, se elegeu denunciando a política do egoísmo e do descaso social da era Reagan-Bush. Não foi muito longe na tentativa de mudar o sentimento dominante. Tem levado surras sucessivas. O novo “mood” americano, por enquanto, se manifesta no patriotismo exacerbado e no egoísmo assumido, mas um dos seus possíveis caminhos é a xenofobia, ainda mais se a economia desandar.

Mas aí é possível que a “salsa” já tenha vencido, os hispânicos dominem Nova York e Los Angeles e as usem como reféns contra o resto da nação.

ps: foto por minha autoria

quinta-feira, junho 08, 2006

Fortunate Fool - Jack Johnson

She's got it all figured out
She knows what everything's about
And when anybody doubts her, or sings songs without her,
She's just so mmm
She knows the world is just her stage
And so she'll never misbe have
She gives thanks for what they gave her when they practically made her,
Into a mmm
She's the one that stumbles when she talks about
The seven foreign films that she's checked out
Such a fortunate fool
She's just too good to be true
She's such a fortunate fool
She's just so mmm
She's got it all figured out
She knows what everythings about
And if anybody doubts her, or sings songs about her
She's just so mmm
Well she's the one who stumbles when she talks about
So maybe we shouldnt talk about such a fortunate fool
She's just too good to be true
She's such a fortunate fool
She's just so mmm
(clique no título e conheça a tradução da música)

terça-feira, junho 06, 2006

Curta: Dance monkey, dance

(clique no título e assista ao curta sobre nós, malditos macacos)

sexta-feira, junho 02, 2006

É o Que a Gente Leva Desta Vida... - Fernando Pessoa

A persistência instintiva da vida através da aparência da inteligência é para mim uma das contemplações mais íntimas e mais constantes. O disfarce irreal da consciência serve somente para me destacar aquela inconsciência que não disfarça.
Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta em maior grau e com mais complexidade. Guia-se por normas que não sabe que existem, nem que por elas se guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os seus actos, são todos inconscientes - não porque neles falte a consciência, mas porque neles não há duas consciências.
Vislumbres de ter a ilusão - tanto, e não mais, tem o maior dos homens.
Sigo, num pensamento de divagação, a história vulgar das vidas vulgares. Vejo como em tudo são servos do temperamento subconsciente, das circunstâncias externas alheias, dos impulsos de convívio e desconvívio que nele, por ele e com ele se chocam como pouca coisa.
Quantas vezes os tenho ouvido dizer a mesma frase que simboliza todo o absurdo, todo o nada, toda a insciência falada das suas vidas. É aquela frase que usam de qualquer prazer material: "é o que a gente leva desta vida"... Leva onde? leva para onde? leva para quê? Seria triste despertá-los da sombra com uma pergunta como esta... Fala assim um materialista, porque todo o homem que fala assim é, ainda que subconscientemente, materialista. O que é que ele pensa levar da vida, e de que maneira? Para onde leva as costoletas de porco e o vinho tinto e a rapariga casual? Para que céu em que não crê? Para que terra para onde não leva senão a podridão que toda a sua vida foi de latente? Não conheço frase mais trágica nem mais plenamente reveladora da humanidade humana. Assim diriam as plantas se soubessem conhecer que gozam do sol. Assim diriam dos seus prazeres sonâmbulos os bichos inferiores ao homem na expressão de si mesmos. E, quem sabe, eu que falo, se, ao escrever estas palavras numa vaga impressão de que poderão durar, não acho também que a memória de as ter escrito é o que eu «levo desta vida». E, como o inútil cadáver do vulgar à terra comum, baixa ao esquecimento comum o cadáver igualmente inútil da minha prosa feita a atender. As costoletas de porco, o vinho, a rapariga do outro? Para que troço eu deles?
Irmãos na comum insciência, modos diferentes do mesmo sangue, formas diversas da mesma herança - qual de nós poderá renegar o outro? Renega-se a mulher mas não a mãe, não o pai, não o irmão.

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'