sexta-feira, junho 09, 2006

Um dia, em Nova York... - Luis Fernado Veríssimo

Um dia, em Nova York, entramos no café em frente ao Lincoln Center para tomar um expresso, hoje, felizmente, mais fácil de se encontrar nos Estados Unidos do que há alguns anos, quando só o que respondia pelo nome de “café” era um líquido escuro de procedência duvidosa, obviamente um impostor, e a Lúcia se admirou: o garçom era americano! Pelo menos era alto, loiro e sardento. O velho terror de quem viajava com pouco inglês para os Estados Unidos, o de não conseguir se fazer entender por nenhum garçom e morrer de fome, hoje não se justifica mais. A não ser que o viajante não maneje nem um simulacro de espanhol. A dificuldade agora é para os americanos entenderem os garçons. Pode-se imaginar, com uma certa ponta de satisfação, turistas do meio-oeste americano sendo obrigados a recorrer a dicionários portáteis ou à linguagem internacional do dedo apontado por pedir seus “ham and eggs” da manhã. Os “hispânicos” são a maioria nos bares e restaurantes de Nova York, mas a mistura é grande. Ficávamos adivinhando a origem das pessoas que víamos servindo às mesas, cuidando da caixa ou trabalhando na cozinha dos lugares que freqüentávamos. Muitos gregos. Pretos com sotaque espanhol quase certamente são dominicanos. Outros têm a pronúncia inconfundível da Jamaica. Muitos sotaques são indecifráveis. O refeitório de Babel depois da danação devia se parecer com um “coffee-shop” de Nova York. Com a diferença que, como todos já adquiriram a típica combinação nova-iorquina de simpatia barulhenta e irritação mais barulhenta ainda, todos se entendem bem, ou se desentendem numa língua aproximada.

Mas ali estava um americano legítimo nos servindo o expresso. Quase pedimos seu autógrafo. Mas dali a pouco entrou um conterrâneo dele e, ou muito me engano ou o chamou de “Rosé”. Era um hispânico. Naquela noite, a moça que nos trouxe as bebidas no “Blue Note”, onde fomos ouvir jazz, era alta, loira e mascava chiclé, mas eu não acreditava mais. Devia ser brasileira.

Metade dos anúncios no “subway” de Nova York são em espanhol. No Times Square, uma fila enorme se prepara para entrar num cinema. São pessoas de todas as idades e de várias cores, vestidos como americanos, aparentemente à vontade naquele concentrado do melhor e do pior da civilização urbana americana que é o Times Square - mas o filme que esperam para ver é do Cantinflas. Nos cartazes do cinema, anunciando aquela e as próximas atrações - comédias, musicais e dramalhões de várias procedências latino-americanas - não há uma só palavra em inglês. No Greenwich Village vamos assistir a um espetáculo chamado “A Salsa encontra o Jazz”. A freqüência é um microcosmo da comunidade latina da cidade. Versões latinas do que os americanos chamam de “yuppies”, “young urban professionals” ou jovens profissionais urbanos. Gente mais velha, obviamente bem de vida, fazendo seu programinha semanal. Tipos que variam do bizarro ao sórdido e que você esperaria encontrar em qualquer cabaré latino-americano. E alguns americanos infiltrados. É difícil dizer, pela cara, de onde vêm os latinos. Os americanos simplificaram tudo e inventaram uma nova raça: “hispânicos”. Lá se fala em brancos, pretos, orientais e “hispânicos”. Claro que os protótipos são os descendentes de índio mexicano e os porto-riquenhos de tez morena, mas a classificação engloba qualquer pessoa nascida ao sul do Rio Grande. A Vera Fischer, de acordo com a generalização americana, não é branca, é hispânica.

Não param de entrar hispânicos, legal ou ilegalmente, nos Estados Unidos. Imigrantes do sudeste asiático, em grande parte refugiados, se espalham em comunidades por todo o país. A economia em expansão os absorve e a sociedade de um jeito ou de outro, também. Há coisas admiráveis. Uma das questões que se discute nos Estados Unidos atualmente é se as escolas devem ser obrigadas a dar instrução a filhos de imigrantes recentes na língua deles - uma questão, talvez, inconcebível em qualquer outro lugar do mundo. Mas há o lado sombrio. Boa parte dos novos imigrantes trabalha clandestinamente, ganhando menos do que o mínimo legal. Uma nova recessão com desemprego alto alimentaria o ressentimento dos nativos. O sentimento da nação é francamente reacionário, primeiro nós e os outros que se danem. Clinton, apesar de ser um democrata meio republicano, se elegeu denunciando a política do egoísmo e do descaso social da era Reagan-Bush. Não foi muito longe na tentativa de mudar o sentimento dominante. Tem levado surras sucessivas. O novo “mood” americano, por enquanto, se manifesta no patriotismo exacerbado e no egoísmo assumido, mas um dos seus possíveis caminhos é a xenofobia, ainda mais se a economia desandar.

Mas aí é possível que a “salsa” já tenha vencido, os hispânicos dominem Nova York e Los Angeles e as usem como reféns contra o resto da nação.

ps: foto por minha autoria

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