Chuva e calor. Camisa colada nas costas. Mofando no Fiat alugado. Bilhete amassado na mão: rua, número, academia de ginástica. Ali mesmo. Só esperar. Limpador de pára-brisa no máximo. Nhec, nhec, nhec. Sob o único poste aceso na quadra, pingos grossos estouravam no asfalto branco. Nhec, nhec. Lá vai ele, eu pensei, quando vi o carro saindo pelo estacionamento. Quando se afastou um pouco, fui atrás das lanternas vermelhas.
Uma hora adiante, eu revistava um homem com antebraços espessos de caminhoneiro, sebento, azedo. Nos bolsos, nada. Em uma pequena sacola de lona, carteira, roupa esportiva rançosa, bugigangas de higiene e um estojo aveludado. Dentro, duas alianças muito, muito grossas de novo-rico. Peguei minhas ferramentas, sem pressa.
"Hei", ele disse, jovial, apertando ainda mais os olhinhos negros, num estágio mais avançado de nervosismo, "sabe quem eu sou?"
Eu sabia. Teobaldo, 57, branco, baixo, gordota, rico falido. Faz ginástica à noite.
"Tenho um jatinho, sabe? Grana e saída certa. Que tal?"
A chuva martelava o telhado de zinco. Difícil ouvir o que o homem dizia. Segui calado e ativo como mineiro, zanzando à luz do lampião, escolhendo o melhor lugar para um buraco. Pronto, encontrei. Ele percebeu. Percebeu e gelou. Foi eu mostrar a pá, desatou no choro. Cagaço dos outros não é problema meu. Comecei a cavar no chão batido do depósito de lenha da chácara desativada na Zona Sul. Terra dura, duríssima, era como se eu golpeasse uma pista de concreto. Desconfiei ter aberto o pulso. Cavar, cavar. Há colegas que fazem o condenado cavar. Eu, não. O sujeito já está sofrendo, todo fodido. Não precisa forçar a barra.
"Escuta, irmão. Eu arrumo quanto você quiser. Hein, hein?", fungando, quase aos gritos, não sei se pelo som do zinco metralhado ou pavor.
Não era diferente dos outros. No começo, pareciam mocinhas pedindo pra ir ao baile. Depois, quando a coisa engrossava, ficavam como os leitões que eu sangrava com o meu avô, na serra. Acendi um cigarro e continuei cavando em silêncio. De repente, o homem parou de chorar, reclamar, implorar, resmungar, incomodar. Isso também é de praxe. Se o encomendado não tem volta mesmo, quando sente o bafo na nuca, aí começa a pensar em coisas práticas que tem de resolver. Uma vez um cara me pediu pra pagar a prestação da casa. Fez um cheque. Eu paguei, claro. O buraco estava pronto. Arrastei o Teobaldo para dentro e fiz pontaria. Comigo é uma bala só. O sujeito fecha os olhos e acorda do outro lado. Nem sente nada.
"Espera, espera", e agora estava calmo.
Baixei a mira. Então ele falou numa Valquíria e, claro, no estojo das alianças.
"Tirei a menina da rua. Paguei dentista, ginástica, montei apartamento e arranjei até um empreguinho. Agora, deixei minha mulher. Custou, mas deixei. Hoje, vou jantar com Valquíria e depois pedi-la em casamento. Leva a caixinha pra Val, leva?", mirando o estojo, que eu deixara aberto, bem à vista.
Falei que ia pensar e fiz pontaria de novo. Não prometo nada pra morto porque dá azar, quando a gente não consegue cumprir. Engatilhei. Ele se encolheu todo, cachorro dormindo na rua em noite de inverno. Cerrou os olhos, rilhando os dentes.
"Pensa num lugar bonito", eu disse, e rezei uma prece à Nossa Senhora da Boa Morte.
terça-feira, novembro 22, 2005
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