Entre a passagem do Clássico para o Barroco, não há vida mais instigante e atormentada do que a de Michelangelo Merisi, o Caravaggio. Em sua biografia podem ser encontrados qualificadores muito distanciados entre si: rebelde maldito e submisso, generoso e egoísta, racional ou supersticioso, humilde e orgulhoso; porém, todos os seus biógrafos são unânimes ao defini-lo como um ser apaixonado, angustiado e extremamente solitário que, após pintar aflitamente por dias, saía à rua disposto a esmurrar as pessoas que por ele passassem. E todos tinham medo daquele ruivo atarracado, forte, com olhos impressionantes como os das criaturas habitantes dos seus quadros.
Já na infância dava mostras do que iria ser como adulto: menino extremamente voluntarioso, briguento e sedento de liberdade, convenceu o pai, mestre-de-obras, de que nascera para pintar. Por isso, aos onze anos, foi matriculado na oficina do artista Simone Perterzano, em Milão. Aos 16 anos, já tendo perdido os pais, Caravaggio empreende fuga para Roma. Lá, seu olhar agudo e senso crítico inigualável não permitem que ele se integre aos colegas pintores que se dedicavam ao vulgar e ao medíocre em troca dos favores que pudessem obter dos poderosos incultos da época, submetidos ao clero fanático e mobilizador ou aos terrores do Tribunal do Santo Ofício.
Sua fama de brigão se espalhara em definitivo por Roma e, após uma série de violências contra pessoas, acabou por matar um homem durante uma luta banal; os Collona, família importante de Roma àquela época, o protegeram e enviaram-no a Nápoles onde se viu recebido triunfalmente por admiradores de sua obra, ansiosos para mantê-lo sob a custódia do mecenato reinante.
Mas, como todos os anjos, bêbados e demônios, Caravaggio era um ser livre e rebelde. Parcialmente aceitava as benesses, mas pintava o que se lhe convinha como observador do mundo. Os homens de seu tempo ouviram-no inúmeras vezes observar: pinto o que a Natureza me ensina como professor...
Por isso, talvez, tenha negado a seu pincel os excessos maneiristas ou barrocos: pintava soberanamente e em seus traços, sobretudo nas diagonais agudas que se entrechocam, louvava a vida que procurava com fúria, insubmissão e a consciência do transitório de tudo no universo.
Mas, como todos os anjos, bêbados e demônios, Caravaggio era um ser livre e rebelde. Parcialmente aceitava as benesses, mas pintava o que se lhe convinha como observador do mundo. Os homens de seu tempo ouviram-no inúmeras vezes observar: pinto o que a Natureza me ensina como professor...
Por isso, talvez, tenha negado a seu pincel os excessos maneiristas ou barrocos: pintava soberanamente e em seus traços, sobretudo nas diagonais agudas que se entrechocam, louvava a vida que procurava com fúria, insubmissão e a consciência do transitório de tudo no universo.
Caravaggio é o detalhe: veias que saltam, testas que se franzem, bocas que se comprimem. E mesmo o componente feísta de que ele se serve traz uma marca que difere da dos demais barrocos. A mulher que segura o prato, à direita do quadro, estampa a dor dos que não se queixam nunca. Tem o rosto vincado de rugas fundas, os olhos baixos e o semblante comovido dos que ouvem alguma forma de consolo que lhes prometa algo para além da existência do corpo.
Morto aos 39 anos, de febre maligna ou o que quer que seja, preso algumas vezes por engano, por descuido, por própria culpa, o italiano Michelangelo Merisi deixou atrás de si o seu rastro humano e solitário. Um olhar sobre suas telas, hoje, é privilégio porque cada uma delas nos diz, sem que perguntemos: "Meu nome é Caravaggio e este é o testemunho de minha travessia humana: estive aqui."
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