quarta-feira, outubro 26, 2005

Menina de olhos grandes - Por Anderson Pinheiro

As pessoas no ônibus não falam nada. Respiram, e só. As pessoas no ônibus não se movem além do chacoalhar de seus corpos no ritmo do motor. Todos sentados, por favor. Não quero ninguém xingando o cobrador. A menina de olhos grandes quer saber quanto vai pagar, mas não sabe aonde quer chegar. Saiu de casa por umas horas porque havia brigado com a mãe. Não fez a comida nem lavou a roupa. Como ele sabe de tudo isso? É apenas um passageiro, não é não? Sou. É que sou metido a onisciente, então vê se te cala e lê o conto.
As pessoas no ônibus - odeio quando ela me interrompe, me forçando botar um oblíquo depois da vírgula e começar tudo de novo. As pessoas no ônibus, as que não falam, espantam-se com seus reflexos na vidraça das janelas por causa da luz de dentro, formando espelhos e revelando verdades das quais elas se escondem, por isso não falam. Nem riem, ave-maria.
Ela me viu. Também, com esse olhão, até eu enxergaria um pólen dentro desse ônibus. Vai ver foi porque pensei alto demais, ou ela é médium. Tá até na moda essas coisas por aqui. Ela senta do meu lado antes que eu ponha os cadernos no assento. Traz na mão um livro de simpatias. Diz que vai fazer uma pra conquistar o Haroldo da rua de trás. Eu apenas observo, de rabo de olho, aquela boca que não pára de falar nos meninos de pêlos desenvolvidos e nas amigas que contam experiências com meninos de pêlos aparados. Essa menina é uma tarada, penso. Ela também escuta. Sou mesmo, respondeu ela em voz alta ao meu inapropriado pensamento. Droga, ela é mesmo metida nas magias. O que vou fazer agora?
Tento pensar outra vez nas pessoas que não falam, nos espelhos das janelas, na luz do ônibus, na escuridão da rua ou no cheiro de peixe que em do rio - que é pra ver se ela esquece o que eu disse.
Você sabia que eu sou quase uma sereia, moço? Talvez seja no meu cheiro que o Sr. Esteja pensando. A gente bem que podia descer nesse ponto e ir nadar no rio. Tá tão calor, o Sr. não acha? Meu pai é pescador e minha mãe fica na sombra do pé-de-amêndoa remendando as redes que ele traz todo dia. Acho que foi assim que eles conseguiram me pegar. Ele sempre sai à noite pra pescar e só volta no outro dia de manhãzinha. Numa dessas, ele apareceu comigo nos braços. Mandou a mamãe preparar um café e um berço.
As pessoas no ônibus não falam. Os espelhos, o motor, o chacoalhar. Não xingar o cobrador. O ponto de ônibus, sobe um e desce outro. Ainda não falam. E essa menina que não pára de falar e fica curiando o que eu penso, meu Deus!
Calma, moço. O Sr. tá muito nervoso, tá até suando. Como é mesmo o seu nome? Deixa eu ver... já sei, o Sr. tem cara de Aliomar. Isso, Aliomar. Mar. A vida tem dessas rimas bestas mesmo. Olha, olha pra mim Aliomar. Parece até que ta com medo de ver a saia de pregas sobre as minhas pernas. Eu até tenho um sinal bem aqui ó, o Sr. quer ver?
Não, não minha filha. Não precisa mostrar nada não minha filha. Você já sabe mesmo no que eu vou pensar, não é? Não mostre nada não.
Sei, sei sim. O Sr. quer me comer, mas não vai. Sou quase sereia, por isso tenho muitas espinhas e o Sr. pode se engasgar.
A menina levantou, pediu parada e desceu, indo molhar os pés no rio, perto da ponte. O motor continua na sua labuta. Meu suor que antes surgia feito lava, parou de ebulir. Volto aos meus pensamentos normais. As pessoas no ônibus não falam, nem riem. Seguem, trêmulas, seus destinos.

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