O indivíduo que não ultrapassa sua qualidade de belo exemplar, de modelo acabado, e cuja existência confunde-se com seu destino vital, coloca-se fora do espírito. A masculinidade ideal – obstáculo à percepção das nuanças – comporta uma insensibilidade em relação ao sobrenatural cotidiano, de onde a arte extrai sua substância. Quanto mais natureza se é, menos se é artista. O vigor homogêneo, não diferenciado, opaco, foi idolatrado pelo mundo das lendas, pelas fantasias da mitologia. Quando os gregos entregaram-se à especulação, o culto ao efebo anêmico substituiu o dos gigantes; e os próprios heróis, tolos sublimes no tempo de Homero, tornaram-se, graças à tragédia, portadores de tormentos e de dúvidas incompatíveis com sua rude natureza.
A riqueza interior resulta dos conflitos que se tem consigo mesmo; mas a vitalidade que dispõe plenamente de si mesma só conhece o combate exterior, a animosidade com o objeto. No macho, a quem uma dose de feminilidade debilita, afrontam-se duas tendências: por sua faceta passiva, capta todo um mundo de abandonos; por sua faceta imperiosa, converte sua vontade em lei. Enquanto seus instintos permanecem inalterados, só interessa à espécie; quando uma insatisfação secreta insinua-se neles, transforma-se em conquistador. O espírito o justifica, o explica e o desculpa e, situando-o na categoria dos tolos superiores, abandona-o à curiosidade da História – investigação da estupidez em marcha...
Aquele para quem a existência não constitui um mal ao mesmo tempo vigoroso e vago, jamais saberá instalar-se no âmago dos problemas nem conhecer seus perigos. A condição propícia à busca da verdade acha-se a meio caminho entre o homem e a mulher: as lacunas da “virilidade” são a sede do espírito... Se a fêmea pura, da qual não se poderia suspeitar nenhuma anomalia sexual ou psíquica, está mais vazia interiormente que um animal, o macho intacto esgota a definição do “cretino”. Considere qualquer pessoa que tenha prendido sua atenção ou excitado seu fervor: em seu mecanismo algo se desarranjou em seu proveito. Desprezamos, com razão, os que não aproveitaram seus defeitos, os que não exploraram suas carências, e não se enriqueceram com suas perdas, como desprezamos todo homem que não sofra por ser homem ou simplesmente por ser. Não se poderia infligir a alguém ofensa mais grave do que chamá-lo de “feliz”, nem lisonjeá-lo mais do que atribuindo-lhe um “fundo de tristeza”... É que a alegria não está ligada a nenhum ato importante e que, salvo os loucos, ninguém ri quando está só.
A “vida interior” é patrimônio dos delicados, desses abortos trêmulos, submetidos a uma epilepsia sem quedas nem baba. O ser biologicamente íntegro desconfia de sua “profundidade”, é incapaz dela, a vê como uma dimensão suspeita que prejudica a espontaneidade de seus atos. Não se engana: com a concentração sobre si mesmo começa o drama do indivíduo – sua glória e seu declínio; isolando-se do fluxo anônimo, do transcorrer utilitário da vida, emancipa-se dos fins objetivos. Uma civilização está “afetada” quando os delicados lhe dão o tom; mas, graças a eles, triunfou definitivamente sobre a natureza e desmorona. Um exemplar extremo de refinamento reúne em si o exaltado e o sofista: não adere mais a seus impulsos, cultiva-os sem crer neles; é a debilidade onisciente das épocas crepusculares, prefiguração de eclipse do homem. Os delicados nos deixam entrever o momento em que as porteiras serão perturbadas por escrúpulos de estetas; em que os camponeses, sobrecarregados pelas dúvidas, não terão mais vigor para empunhar o arado; em que todos os seres, corroídos pela clarividência e vazios de instintos, se extinguirão sem forças para ter saudades na noite próspera de suas ilusões...
terça-feira, março 15, 2005
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Um comentário:
Nooossa Thiago, você escreveu isto sozinho? Vou tentar de novo com um dicionário.
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