quinta-feira, junho 16, 2005

SHE´S GONNA BOIL MY BUNNY OU DA MINHA PROVÁVEL INEXISTÊNCIA - Peter Krause



O mundo ficcional obedece à regra da verossimilhança. O que parece óbvio tem implicações sobre o leitor da obra, em especial audiovisual onde o impacto está ligado diretamente a ela. "A Cela", um filme visualmente rico e detalhado, pecou pela falta de empatia para com um público inundado em imagens, enquanto "A Bruxa de Blair", ganhou sua audiência com base na dúvida gerada pela crueza da técnica usada. Verossimilhança e Pacto Ficcional andam de mãos dadas pelas pradarias do Velho Oeste. Era uma vez um sujeito que acredita em tudo aquilo que começa com era uma vez. Mas o mundo ficcional para funcionar precisa de leis mais rigidas que o não ficcional, absurdo por natureza.
Não gostam do uso do termo Absurdo por suas implicações existenciais, camusianas? Usemos então o termo "randômico". O mundo não ficcional é randômico.
Vejamos alguns exemplos. Num mundo ficcional, não é verossímil que uma personagem seja abordado por um punk bêbado na rua que o olhe e diga "eu sou niilista" e vá embora. No universo não ficcional isto ocorre.
No universo ficcional, professores que se envolvem com alunos (vide Boston Public) são demitidos sumariamente. No mundo não ficcional, não.
No mundo ficcional uma mulher não mutila a língua de um homem com os dentes enquanto outra pessoa pula do décimo andar no mesmo bairro. Em Porto Alegre, no dia 1º de Junho de 2001, isto ocorreu na Cidade Baixa.

Na não-ficção não existe justiça poética.
A conclusão de "Garota Interrompida" é que os loucos são "como você e eu, só que mais". O conjunto de malucas do filme recém mencionado não é muito diferente dos drugues de Alex ou dos habitantes de um certo Hotel de um Milhão de Dólares. A diferença é que o primeiro filme é a autobiografia da autora enquanto os outros seriam trabalhos de ficção pura. Mas os mundos são povoados de freaks e isto é natural de qualquer sociedade, terrestre ou extraterrestre. Há loucos vivendo sob a Matrix.
Um grupo de pessoas tomadas de obsessões, todas amigas e dividindo interesses e paixões (em todos os sentidos) não poderia existir numa ficção realista. No entanto, tal grupo perambula pelas ruas e avenidas da capital gaúcha como se existissem … porque existem.
Punks com mestrado e doutorado, Warhol superstars, presbiterianos com supostos pactos com satã, virgens suicidas, bregamanícos metaleiros, meninas de dezesseis anos na universidade, pessoas sendo chutadas por mendigos, sexo sem amor, amor sem sexo, niilistas à mancheia, famequianas que gostam de Schoppenhauer, Kant se masturbando nas páginas da Crítica da Razão Pura, chefes de departamento com bottoms "I got this way kissing boys", Fischer e Frank Jorge, Wander e Iggy Pop, Tatata, Regininha Poltergeist, Nei Lisboa na Lancheria, a onipresença de Otto Guerra, o lingüiceiro do Alto da Bronze era um vampiro, Bob Dylan no Mercado Público e Ian Anderson de havaianas, Gisele Bündchen e Ieda Maria Vargas, o afilhado da Ieda Maria Vargas se formando na Famecos com uma monografia sobre videogames, geração de Brasília, Renato Russo e Freddie Mercury, Daniela Mercury, ACM na YMCA, Irmãs da Caridade, "as pessoas que você teve de encontrar sem suas roupas" , eu, você, o Zanella e sua coleção pornô em super8, as Meninas Superpoderosas, As Viagens de Gulliver, Gavin Friday, Paul e um menininho chamado Elijah Bob Patricius Guggi Q Hewson, os efeminados do Segundo Caderno, Patti Smith, Robert Smith e Roy Orbison, Sócrates comendo Platão comendo Aristóteles, Ren & Stimpy, a viagem sem volta de Sid Barret, Gretchen virando evangélica, o fato de que um dia existiu um sujeito chamado Gaudí e que ele fez o que fez, Salvador Dalí e Michelangelo, Shakespeare e aquele ex-presidente que escreveu Marimbondos de Fogo, você, eu, o WC, tomar banho todos os dias, perfumes, George Lucas e Lars von Trier, Cicciolina e Madre Tereza de Calcutá, sapateado, jazz, pagode e paçoquinha, Plano Collor, Guerras Mundiais, Manhattan, Projeto Manhattan, Nixon, o boquete no Clinton, alguém dizendo "eu te amo", coelhinhos fervidos, prostitutas endinheiradas, um tapa na cara, encontrar um hippie no meio do deserto, conhecer o amor da sua vida no 138, rock'n'roll, Boy George, Glam Rock, os oscars do Tom Hanks, o sucesso da Madonna, Graforréia Xilarmônica regravada pelo Pato Fu, perder parte da língua, brindar à chuva ácida que corrói nossas pálpebras, as quatro bolas pretas para Tolerância, Berlim, Bom Fim, Orbis Tertius.
Já que, q.e.d., o mundo não tem sentido em si, os homens (e mulheres também) fazem de tudo para atribuir sentido ao que não tem. A ficção surge nas cavernas para tentar ordenar e dar sentido ao mundo que nos é apresentado. Não admira que as primeiras obras literárias sejam os Mitos de Criação, Ilíada, Odisséia, Genesis, Eneida, O Grande Roubo de Touros, gregos, judaico-cristão, romano e celta, respectivamente.
Não é de admirar também que o maior sucesso ficcional do século XX seja também um mito de Criação: Star Wars. Também não é de admirar que haja um movimento para regulamentar a religião Jedi (na Inglaterra).
Os grandes mitos não são os únicos, no entanto. Cada pessoa tende a construir suas pequenas ficções no "cineminha da mente" para ordenar o que lhes ocorre. Quando eu conto que saí a caminhar pelo deserto do Mojave e encontrei um hippie de quase cinqüenta anos, a tendência é dizer "claro, isso é um baita dum cliché". Seria, num filme ou num livro, mas ninguém está escrevendo a minha vida e o fato só vira um cliché quando é narrado para uma terceira pessoa e, portanto, passa à obedecer às duas principais regras da ficção, Coerência Interna e Verossimilhança. Por esta mesma razão, quando uma vida se preenche muito do que seriam clichés ou, ao contrário, quase não possui nenhum, os terapeutas dos amigos vêm a afirmar que não passamos de figmentos da imaginação daqueles.

A pílula azul E a vermelha
Para quem agüentou ler até aqui, ficou evidente que não foi usado o termo "Mundo Real". A explicação é simples: tanto os universos ficcional e não ficcional existem, na medida que podemos reconhecê-los. E mais, os confundimos … vide o caso dos Jedis ingleses. Não temos a escolha de Alice ou de Neo, Lestat não é gentil conosco. Precisamos do ficcional para o não ficcional e do não ficcional para o ficcional, pois só compreendemos um com a ajuda do outro. Somos leitores uns dos outros e nossa incapacidade de nos compreendermos completamente, a inutilidade da psicanálise, os corações partidos, os Vinte Poemas de Amor e a Canção Desesperada, os mal entendidos surgem do fato de que temos de ser verossímeis para os terceiros embora não o sejamos para nós mesmos. Sim, sabemos instintivamente da falta de sentido das coisas, só que não admitimos isto uns para os outros nem que aquela velha vaca tussa de novo lá no brejo.
Vivemos presos entre ficções e realidades, não admira que discípulos de Descartes tenham afirmado não conseguir conceber o mundo exterior a seus corpos, terem ficado presos à noção do Gênio Maligno da Segunda Meditação, nem que este tenha-se transmodificado em The Matrix, mediado pela teoria do Cérebros no Balde de Hillary Putnam (que, diga-se de passagem, é um homem). É preciso provar que esse tal de Real existe, porque do virtual todo mundo sempre teve consciência - mesmo antes dos computadores.
Uma coisa deve existir, se a conhecemos, reconhecemos e podemos comunica-la … pelo menos em teoria, diria Sexto Empírico. Vamos então partir do princípio que existem os mundos ficcional e não ficcional e dar esta discussão por encerrada.

Da minha provável não-existência (no mundo ficcional)
Conforme já foi afirmado, a ficção precisa de coerência interna para existir. Uma personagem também. Há muito que assumi minhas contradições. Todo mundo sabe que "A" e "~A" não podem coexistir. Logo eu não coexisto comigo mesmo, ergo, não existo.
Só que eu existo. Caso contrário não estaria escrevendo isto.
Entretanto, quem for falar de mim, ou de meus amigos, ou de você, precisará limar nossas contradições internas fulminantes e deixar-nos mancos de nós mesmos para que possamos nos tornar críveis a estes improváveis ouvintes.
Na ficção da mente dos outros somos fração de nós mesmos. Nada podemos fazer a este respeito.

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