Perdemos de novo. Eu fui o goleiro. Não jogo nessa posição, mas o titular não veio e ninguém do time gosta de jogar no lugar dele. Então encarei o desafio, disse que eu era o único macho ali pra substitui-lo. Meu time todo achou graça e eu acabei fazendo um papel lamentável. Ainda tive que agüentar o goleiro adversário imitando com deboche meus frangos do outro lado do campo. Fiquei quieto, eu já estava bastante irritado com o jogo perdido.
Fernanda chegou a cinco minutos do final. Parou na lateral da quadra, sentou em um banco de madeira, estava fumando um cigarro.
Quando a campainha tocou avisando o fim do nosso horário, cumprimentei todo mundo, menos o goleiro palhaço, saí da quadra e sentei ao seu lado.
Por que tu chega sempre só no final? — eu bufava, o suor escorria pelo rosto.
Sei lá, eu tava em casa dormindo, perdi a hora.
Notei que seus dentes estavam amarelados, talvez fosse o maldito cigarro.
Por que tu não pára de fumar, teus dentes estão horríveis, essa merda ainda vai te matar — falei, na verdade mais com raiva do resultado do jogo do que com os dentes dela.
Fumar me faz bem, e se meus dentes são horríveis o problema é meu — ela resmungou. Vamos sair hoje?
Não posso, combinamos um churrasco agora — acenei para meus amigos, eles já estavam em volta da churrasqueira, no fundo do ginásio, bebendo cerveja.
Na semana seguinte eu joguei na linha, mas não fiz uma boa partida. Machuquei o pé logo no início: driblei o goleiro e quando fui chutar em gol ele me calçou por trás, ainda deitado no chão. Discutimos e o jogo ficou parado por alguns minutos. Ainda estávamos calmos, se fosse ao final da partida, os ânimos explodindo em adrenalina, aquela discussão tinha virado briga.
Fernanda chegou um pouco antes do jogo acabar. Após o sinal, sentei no banco de madeira com ela.
E então, foi ao dentista? — perguntei. Ela continuava fumando.
Fui, já comecei o tratamento, o dentista é muito legal.
O dentista? É um homem? — tentei parecer desinteressado.
É, um homem, um cara bem simpático.
Bonito? — vacilei.
Lindo — ela disse, jogando o filtro do cigarro na caixinha de areia ao lado do banco.
E esse dentista lindo não mandou parar de fumar? — eu queria parecer irônico, mas na verdade estava mostrando o quanto era imbecil fazendo aquelas perguntas.
Mandou, esse foi o último — ela respondeu — o que nós vamos fazer hoje à noite?
Nada, hoje preciso descansar — respondi, tirando o tênis e a meia. — Machuquei meu pé, olha — mostrei meu tornozelo, doía um pouco e estava levemente inchado. Ela ficou quieta, continuou olhando para o toco de cigarro fumegando dentro da caixinha de areia imunda.
O outro jogo foi bastante disputado, mas de novo não conseguimos ganhar. Eu estava angustiado e joguei muito mal. Discuti com o goleiro adversário mais uma vez. Ele continuava debochando do meu jogo, desta vez por causa dos gols que eu perdia. Xinguei ele e o juiz, recebi um cartão amarelo e quase fui expulso. Quando o jogo estava acabando, Fernanda chegou. Não fumava, agora mascava um chiclete. Tive a impressão de vê-la, de longe, sorrindo pra mim. Passei pelo goleiro e ele cuspiu na minha camiseta. O juiz não viu. Não fiz nada, limpei o cuspe com as mãos e continuei jogando.
Ao final do jogo, abri uma garrafa de água mineral e sentei ao lado dela.
E então, parou mesmo de fumar? Teus dentes até estão mais claros — eu disse.
Parei, tudo pelo tratamento — ela respondeu, simpática. Tinha uma expressão diferente que eu não conseguia identificar o que era. Estava animada como eu não via há muito tempo.
Eu sabia que isso ia deixar teu sorriso mais bonito — insisti.
Obrigada. Vamos sair? — ela sugeriu.
Hoje não vai dar, amanhã tenho uma reunião importante no trabalho e preciso descansar. Talvez amanhã à noite... — falei, distraído.
Ela não respondeu, continuou mascando o chiclete com uma expressão feliz no rosto. Talvez aquele sorriso fosse uma defesa e ela estivesse profundamente irritada com minha recusa, mas achei melhor não levantar esse assunto.
No jogo seguinte ela chegou um pouco mais cedo, pôde ver algumas jogadas, neste dia eu estava inspirado mas não consegui marcar nenhum gol. Ela continuava mascando chiclete, o goleiro continuava me irritando, e numa confusão perto da área, quando surgiu a oportunidade, pisei na perna dele.
Qual o problema, cara? — ele me perguntou, no chão, a mão na perna machucada.
Não respondi, o juiz me olhou com reprovação e eu pedi pra ser substituído, senão aquele desentendimento ia engrossar.
Sentei com Fernanda no mesmo banco de sempre.
E então — comecei — agora largou o cigarro e ficou viciada em chiclete?
É uma goma pra clarear os dentes, sugestão do dentista — ela se defendeu. Continuava com um olhar distante, mas estava bastante amorosa e sorridente.
Puxa, esse cara deve ser muito bom — forcei, só pra ver sua resposta.
É ótimo, mas acho que o tratamento está no final. Uma pena, tenho me sentido muito bem cuidando do meu sorriso — ela disse.
Eu já imaginava isso, é bom cuidar do próprio corpo.
A gente podia sair hoje... — ela insinuou.
Amanhã tenho uma prova importante, preciso estudar, quem sabe não transferimos pra outro dia? — me esquivei.
Na outra semana eu joguei muito bem e fiz vários gols. Há muito tempo eu não marcava, aquilo me aliviou. Fernanda chegou na metade do tempo, talvez ela estivesse começando a gostar das partidas. De longe eu a vi entrando no ginásio, os dentes pareciam artificiais, brilhavam muito, ela toda estava realmente mais bonita.
Pouco antes do jogo acabar, recebi a bola livre na frente do goleiro e ele não hesitou: seu chute veio direto na minha coxa, eu caí para o lado urrando de dor. O juiz apitou. O segundo chute veio no meu rosto, embaixo do nariz, e depois do terceiro eu parei de contar.
Acordei alguns instantes depois com o uniforme encharcado de sangue. Fui atendido pelos meus amigos. Minha primeira reação foi perguntar a eles pelo filho da puta do goleiro, mas eu não conseguia falar. Coloquei a mão na boca e senti que me restavam poucos dentes.
Fernanda continuava sentada no mesmo banco de madeira, mascando seu chiclete e sorrindo pra mim, impassível.
Hoje tenho um bom motivo pra não sair — falei com dificuldade. Eu queria parecer engraçado, mas enquanto falava eu babava mais sangue. Minha situação não era nada boa.
Tudo bem, hoje eu já tenho compromisso mesmo — ela disse, sorrindo. — Vou sair com o dr. Sérgio.
Antes que eu pudesse perguntar quem era o dr. Sérgio ela se levantou do banco e completou.
Acho que quem precisa de dentista agora é tu — depois ela cuspiu o chiclete na caixinha de areia e se foi.
Eu não consegui dizer nada, fiquei olhando ela ir embora, depois me agachei e comecei a catar meus dentes espalhados sobre o sangue no chão da quadra.
Os dentes da serpente mudam e são substituídos ao longo de sua vida.
quarta-feira, junho 15, 2005
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