terça-feira, abril 17, 2007
Crônica existencialista - Airton Monte
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E eu, nem que nem, enfiado até o talo no cerne do mundo, no ventre de todas as mulheres que jamais possuí por incúria, crueldade e preguiça. Ah, eu sou em verdade em belo tolo, porém meus olhos reluzem como punhais no breu e eu, capitão de breve curso, vou em meio ao nevoeiro ouvindo um samba triste de Paulinho da Viola, a levar meu boêmio barco devagar. Noite dessas, a chuva grossa dedilhando um blues no meu telhado, eu sonhei morrendo e era uma morte de tal maneira delicada pois me deu a nobre graça de morrer de repente e súbito, morri, sem nenhuma dor como se apenas houvesse adormecido após um báquico porre de existência.
E muito naturalmente, subi aos infernos e vi que estava, afinal, no lugar certo para restar numa infinita atemporalidade. O que importa se acordei de um bendito pesadelo, se o inferno nada mais é que a realidade nua e crua feito um naco sangrento de um rosbife e um longo, abençoado gole de esquecimento. Eu insisto em ser eu mesmo, único e indevassável dentro de mim mesmo como num verso maldito do meu pai, poeta, áspero irmão José Alcides Pinto, a mais doce e humana encarnação da Besta. É-me impossível abdicar de ser eu mesmo. Eu, Eu, Eu gravado em inscrições escritas com o sangue dos meus antepassados.
Negras nuvens prenhes de chuva pairam sobre o fim de tarde de um domingo pleno de agonizantes prazeres e promessas. Teus olhos de Sulamita refulgem de uma claridade ainda não desperta e permitida, sarça ardente. Em mim, porém, nenhuma gota de vento solar, é só uma imensa, oceânica sensação de que ainda estou fremente feito a incandescência final da cauda de um cometa extinto. E eu estou no mundo qual um personagem de Sartre e eu, nem que nem, mergulhado no caldeirão da vida. E eu, nem que nem, animal forjado no miserável cotidiano. Um dia hei que despertar do pesadelo gritando: que coisa mais bela é a vida.
Bukowski
A morte medíocre do Capitão Gancho e o casal pirata - Rodolfo Viana
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O adiposo Smee não deu ouvidos ao pedido. Continuou fazendo o que sempre fazia – nada. Irritado com a omissão do companheiro corsário, Starkey, homem de confiança do capitão, assumiu o posto.
- Isso, seu saliente – disse Smee, irritado – Puxa mesmo o saco do capitão.
- Tenho que manter os negócios da família, oras! Ainda mais agora que o capitão pensa em largar essa vida de pilhagem...
- Ah, você só está nesse barco por puro nepotismo...
Starkey rezingou um “humpf”.
Silêncio.
- O que seu tio, nosso glorioso capitão, vai fazer quando deixar essa vida? Vai ser goleiro do Íbis? – disse Smee, rindo todo o sarcasmo dos sete mares. Sabia que falar da deficiência física do capitão era inundar de ira o coração de Starkey.
- Seu puto! – berrou em resposta – Ainda te mato!
- Ah, convenhamos... O que um homem com um gancho no lugar da mão direita pode fazer? Se ainda fosse canhoto...
Starkey se recompôs. Era um pirata de bons modos, afinal. Efeminado, inclusive.
- Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo. Sabia disso? Sabia que nas horas vagas, entre uma fuga de crocodilo e uma briga com crianças, ele pratica ventriloquia?
Silêncio novamente. E então, uma crise de riso do tamanho do oceano irrompeu a mudez.
- Seu tio? Ventríloquo? Com aquele gancho? – dizia Smee, entre golfadas de ar.
- Pois é um excelente ventríloquo. Amador ainda, mas excepcional – disse Starkey, a polidez em pessoa, e profetizou um “vai ter um futuro brilhante”.
Não teve.
Enquanto se aliviava na ponta do convés, assoviava, como de costume, La vie em rose. Por isso, o Capitão Gancho não ouviu o tique-taque do crocodilo e foi devorado impiedosamente.
Smee ainda viu quando o crocodilo regurgitou o gancho, mas achou que não fosse nada. E no mais, os “negócios de família” ficariam para Starkey, que parecia nutrir um certo desejo proibido pelo adiposo Smee.
Quando Starkey apercebeu-se da morte do tio, chorou o choro de novela mexicana. Mas Smee estava ali para consolá-lo. E desde então, Smee e Starkey vivem juntos. Pensam em adotar uma criança da Terra do Nunca. Ou isso, ou comprar um poodle toy.
link: http://www.revistapiaui.com.br/2007/abr/concurso_vencedor.htm
O futuro chegou - Silvia Curiati
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O futuro me decepcionou um pouco, confesso. Esperava realmente ver carros voadores, tele-transporte, gente ficando invisível e quadros como os de Daniel Azulay, que se revelam à pincelada do artista. Esperava ter feito a viagem de carro alado pelo mundo, mas por outro lado, fico feliz por não estar casada, com filhos, etc. e tal.
Por estas e outras, é complicado falar do futuro da humanidade quando cada vez mais somos surpreendidos por aberrações. Transgênicos, clones, malucos, mulheres sendo inseminadas por girinos, homens-mutantes que se transformam em répteis. É impossível saber o que vem depois, é difícil imaginar o que nos espera. Diziam que não teríamos mais água suficiente para suportar a superpopulação, por exemplo. E que os ETs estariam entre nós, as baratas seriam superdesenvolvidas e imortais, e quiçá transformariam-se em escritores de renome.
É fato, há ETs entre nós e as baratas estão cada dia mais cascudas e difíceis de morrer. E na boa, com esta expectativa, a humanidade está perdida mesmo, como já dizia minha vovó...
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