Dedico esta meditação aos que baniram do seu mundo o “eu não sei” e o conseqüente reconhecimento da ignorância que faz o mundo avançar. Impressiona-me o fato de jamais ter ouvido de nenhum homem público um trivial e humano “isso eu não sei”. Penso que os caras devem ser muito preparados, mas daí vem a perplexidade: se eles sabem tudo, se conhecem demais todos os problemas, por que então nada é resolvido?
Olhando a movimentação dos poderosos confirmados ou recém-inaugurados pelas urnas, esses que ontem sabiam tudo do mundo e do Brasil, estou convencido de que um dos maiores paradoxos brasileiros é o saber demais. É ter um conhecimento quase imoral de todos os problemas e, não obstante toda essa sabedoria, não resolver p@##a nenhuma. Talvez esse “saber demais” seja uma maldição pós-moderna: o saber tudo nos leva a não fazer nada.
De onde vem esse “saber demais”? Quais as suas marcas? A primeira é a sua associação a uma visão de mundo avessa, alérgica e distanciada do resultado ou da prática. Antigamente chamava-se “bacharelesco” esse tipo de conhecimento que passava pelas lombadas dos livros e pelos nomes dos autores, deixando de lado suas aplicações, contextos, resultados e, sobretudo, limites. O floreado sendo mais básico do que o argumento e a crítica. Suas implicações práticas jamais eram vistas, pois não seria - como ainda não é - de bom tom cobrar pragmatismo dos sábios, sobretudo quando eles acumulam sapiência com o poder de nomear, conceder ou exonerar, por exemplo.
A segunda característica desse “saber tudo” é a idéia de que a realidade pode ser conhecida à exaustão. Que os fatos da natureza e da vida social podem ser esgotados na sua lógica, dinâmica e essência. Que existem realmente teorias que respondem a todas as questões, dirimindo todas as dúvidas, porque as únicas questões possíveis são aquelas formuladas pelos sábios que conhecemos, lemos e admiramos. Pior que isso, que existem pessoas que “sabem tudo” e, por isso, são as mais adequadas para nos governar.
Há uma correlação entre “saber demais” e elites pequenas, densas hiperconscientes, ignorantes e sovinas. Em toda sociedade hierarquizada, o saber é mais um recurso na manutenção dos seus círculos de poder. Para “subir” é preciso saber o caminho das pedras. Deve-se conhecer as pessoas certas ou estar no partido adequado para ser reconhecido. Não é fácil entrar no clube dos afortunados que rompem o duro cerco do anonimato e chegam ao “nirvana social”. O patamar dos que não pensam mais em usar nenhuma versão do “Você sabe com quem está falando?”.
Sendo parte da casta das “unanimidades nacionais”, esses brâmanes formam, como ocorre entre os Bruzundangas de Lima Barreto, o círculo dos que “sabem tudo”. Dos que tudo podem dizer e, melhor que isso, dos que nada precisam fazer ou prestar contas. Nesses sistemas, o brilho engloba a integridade.
O exato oposto acontece nos sistemas igualitários, nos quais cada segmento (ou, se quiserem, classe social) tem o seu saber. Tem sua visão de mundo que está, como as pessoas, em conflito e disputa com as outras. Cansei de ouvir, nos Estados Unidos e na velha Inglaterra, a expressão “o seu ponto contra o meu”, significando a sua perspectiva, sua visada das coisas, seu conhecimento do problema.
Essas são as sociedades com professores e sábios, mas sem sabichões. Sistemas nos quais o conhecimento disso ou daquilo - do crescimento econômico, da segurança pública, da educação, da imprensa, dos livros, etc. - passa por muitos, democrática e igualitariamente. Essas são as sociedades com muitos recomeços, experiências e revoluções. Aqui temos muitos pontos de vista, o que conduz a uma visão crítica dessa crença numa sabedoria essencial, típica de sistemas em que educação significa primordialmente pose, falar difícil e boas maneiras, não a ausência de ignorância.
Credos mínimos estruturam essas culturas. Por exemplo: o “First come, first serve” (quem primeiro chega, primeiro é atendido) é um dos princípios fundamentais do igualitarismo moderno que ainda não precisou de “regulamentação” por nenhum jurista de fala enrolada e de linguagem criptográfica, com o fito de limitá-lo às elites.
O problema das sociedades dos que sabem demais é a sua aversão às aplicações práticas; o famoso teste de comer o pudim que eventualmente limita as teorias. O resultado, estamos todos fartos de testemunhar, é que sabemos tudo o que deve ser feito, mas as soluções - despoluir a baía, acabar com uma polícia parada, lidar com menos preconceito contra o nosso racismo, desregular onde é preciso para regular firmemente onde é necessário e, mais que isso, aplicar, decidir, resolver, prender e punir - são teorias. E em política, a teoria pura é quase sempre desesperança e utopia.
Tudo se passa como se o nosso fado fosse o de saber tudo e não fazer nada; ao passo que onde não se sabe experimenta-se, subordinando o saber ao teste, pois somente assim a teoria se transforma num meio de resolver questões. Mas como compensação para toda essa sabedoria.
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